Pela descrição, O Mundo de Ontem (2022) aponta a um thriller político empolgante. Faltando apenas três dias para as eleições presidenciais na França, os prognósticos indicam uma provável ascensão da extrema-direita ao poder. A atual presidente, Isabelle de Raincy (Léa Drucker), prefere não concorrer à reeleição por motivos escondidos da população. Mas o espectador logo descobre que a mulher sofre com uma doença em fase terminal. Que responsabilidade ela teria quanto aos rumos da política no país?
Para a nossa surpresa, no entanto, o resultado é contemplativo, melancólico. A presidente, o primeiro-ministro e demais aliados se encontram num palácio do Eliseu sempre escuro, vazio, onde os corpos se tornam ainda menores e mais frágeis no interior dos cômodos gigantescos, frios, repletos de ouro e mármore. Eles conversam a dois, sem barulhos ao redor, nem ligações ou compromissos iminentes. A tensão se encontra menos na urgência do que na impressão de inevitabilidade diante de uma catástrofe anunciada.
O dispositivo se assemelha curiosamente a uma peça de teatro. Embora decida filmar em locações luxuosas, explorando bem a passagem pelos cenários, o diretor Diastème relega os cômodos a meros panos de fundo com os quais os personagens interagem pouco. O foco se encontra inteiramente nos diálogos, obrigados a representar todos os conflitos de uma nação. Escândalos de corrupção, pesquisas de intenção de voto, alianças de última hora e possíveis polêmicas são meramente mencionados pelos personagens.
Em consequência, o longa-metragem se apoia numa representação pela ausência. Existem quatro ou cinco personagens centrais, cercados por pouquíssimos coadjuvantes e raros figurantes. Os retratos da política constitucional costumam ser acompanhados de comícios, discursos, multidões e outras cenas coletivas e acaloradas. Ora, o cineasta menciona elementos fundamentais que não está disposto a representar: a organização das eleições, o peso da mídia, o pensamento da sociedade francesa. Nem mesmo o quadro médico da heroína será detalhado.
Diastème opera na chave de indícios: Raincy é vista numa sala secreta, com uma perfusão e um respirador — o espectador que deduza o resto. Willem (Thierry Godard), o temido representante do fascismo crescente, profere uma única frase odiosa de caráter populista, destinada a ilustrar a integralidade de seu pensamento. Dizem que a presidente possui popularidade baixa. Dizem que seus laços com lideranças europeias são frágeis. Precisamos confiar no que escutamos, visto que estes peões se encontram fora do tabuleiro.
O teor fatalista contamina o resultado, para o bem ou para o mal. […] É claro que esta fábula se relaciona diretamente com o crescimento das forças extremistas no país.
O Mundo de Ontem se transforma num curioso filme metonímico, ou um suspense fantasma. O palácio do Eliseu remete a um casarão fantasma, onde perdemos a referência especial e temporal. O roteiro também exclui o sentido de intencionalidade: apenas descobrimos as ações da chefe do governo quando ela está em vias de executá-las. Caso haja planos e objetivos bem traçados, eles são ocultados, ou somente aludidos. A política se torna uma questão de contenção de gastos, ao invés de estratégia ambiciosa a longo prazo.
O teor fatalista contamina o resultado, para o bem ou para o mal. Léa Drucker oferece o mínimo de força necessária para se crer no cargo poderoso, sem sublinhar qualquer qualidade particular desta personagem. Seu estado de saúde, junto ao tom sempre sussurrado de Benjamin Biolay, e uma tragédia no final, despertam a impressão de que a política democrática respira por aparelhos. O texto cogita um possível otimismo, ainda que vago, dependendo de inúmeros fatores futuros. Ou seja, existem saídas, porém elas soam improváveis. Vivemos uma época sombria.
É claro que esta fábula se relaciona diretamente com o crescimento das forças extremistas no país. Seguindo os passos do pai, Marine Le Pen e o partido Front National têm crescido a cada eleição, tornando-se uma opção palatável a parte considerável dos franceses, e aumentando o número de cadeiras na Câmara. O racismo e a intolerância saíram do armário, proferindo frases antes impensáveis em nome de uma suposta liberdade de expressão. Os brasileiros conhecem muito bem este contexto, aliás. Duas décadas atrás, um político como Bolsonaro jamais seria eleito, e nunca se sustentaria no cargo após os atos praticados. Mas os tempos são outros, justamente.
Aposta-se num teor amargo, mais próximo do horror do que propriamente do suspense. A trama se passa majoritariamente durante a noite, ao invés da política midiatizada, de dia. A conspiração criminosa com um ministro, envolvendo o chefe da segurança, aponta para a prática do horror, sublinhada pela existência de uma sala secreta, ocultada do espectador. Existe um senso de algo monstruoso tomando posse do palácio presidencial.
Infelizmente, tamanha construção de atmosfera se encontra com diálogos frágeis, e um senso protocolar de mise en scène. Para uma obra tão dependente de conversas, seria necessário trabalhar com um texto afiadíssimo, repleto de sugestões a respeito do que não se vê. Ora, as conversas correspondem ao imaginário popular da articulação política, em trocas somente funcionais. Mesmo liderados por atores de peso (Denis Podalydès, em especial), estas figuras possuem personalidades fracas, além de pouca construção para além dos cargos profissionais.
Faltam indícios de suas ambições particulares, seus tiques de linguagem, seus desejos, medos, ressentimentos. Diastème oferece um improvável filme de ação, no sentido de externalizar quase tudo o que os personagens pensam, de maneira automática, e por meio de um olhar onipresente. Quando segredos ocorrem nos bastidores, estamos junto do segurança fazendo planos perigosos, ou de um homem tomando uma decisão extrema. Até a imersão do espectador via olhar subjetivo é comprometida pela abordagem glacial das relações humanas.
Ao final, seria difícil apontar alguma cena mais forte, ou uma oscilação de tons e rumos nesta trama. A linearidade também contribui ao tom conformista: os dias se sucedem sem que os pequenos esforços dos personagens surtam qualquer efeito. Vindo dos maiores nomes do governo francês, a sensação se assemelha a uma derrota assumida antes mesmo da hora. O Mundo de Ontem carrega a aparência constante de fim de festa, onde ainda existe um pouco de música tocando ao fundo, mas a maioria dos convidados já foi embora, os que permanecem estão sonolentos, e ninguém enxerga com muita alegria a perspectiva de acordar no dia seguinte.