Os irmãos Jonas e Rebeca ainda vivem no casarão onde os pais morreram, num incêndio, muitos anos atrás. Aparentemente, a dupla nunca cogitou sair dali. Eles deixam um botijão de gás à vista na cozinha, além de fósforos por perto. A parede preserva o aspecto queimado, sem uma nova camada de pintura. Há um aspecto perverso nestas duas figuras, como fantasmas, presas à cena da tragédia, e sem conseguir efetuar o luto do ocorrido. Teria sido fascinante entender a psique de ambos, no entanto, o filme jamais desenvolve a psicologia deles.
Pelo contrário, serão definidos por estas únicas características: a orfandade e a interdependência. Paira um aspecto incestuoso entre os jovens, porém, jamais trabalhado. Jonas oscila entre a paranoia, a esquizofrenia, a melancolia e a depressão profunda. Ele não consegue sair de casa, funcionando como espelho para a curiosa criança presa no porão. O menino está ao mesmo tempo preso e solto, intimamente vigiado, e deixado numa liberdade quase selvagem. Ora aparece amarrado, ora vaga pelos cômodos da casa sem ser percebido. É um mistério como teria sobrevivido até então, posto que não come, não cozinha, não recebe cuidados mínimos.
O Porão da Rua do Grito está bastante preocupado em resgatar um imaginário clássico e gótico do horror estrangeiro. Estão presentes o casarão mal-assombrado, com fantasmas nobres; os colares e joias dos mortos; os quadros dos aristocratas que morreram ali; a criança sombria que pode ou não existir de fato; o rapaz cujo encarceramento beira a crise de violência, em moldes O Iluminado; a avó doente cuja constituição remete à monstruosidade e reafirma a presença insistente da morte na casa. Os irmãos, em consequência, lembram mortos-vivos, zumbis pairando sem rumo.
O aspecto de maior potencial provém da relação entre estes códigos e a história do Brasil. A diretora Sabrina Greve busca efetuar uma conexão entre a independência do país — a Rua do Grito existe de fato, no bairro do Ipiranga, em São Paulo — e a libertação de Jonas e Rebeca, presos ao imóvel e às lembranças dolorosas. No entanto, a metáfora jamais se aprofunda, nem desenvolve: restam duas breves menções soltas no início e na conclusão, como pensamentos a posteriori, concebidos em pós-produção. Ao longo da trajetória, a obra se contenta com o imaginário norte-americano ou europeu, e um tanto anacrônico — ou talvez, na concepção dos criadores, universal e atemporal.
Jonas e Rebeca são desprovidos de desejos, objetivos, latências. O menino preso ao porão, comportado e asseado ao limite do robótico, jamais provoca qualquer dilema duradouro.
Esta mesma jornada poderia soar mais complexa caso os protagonistas tivessem atividades e conflitos no espaço-personagem do casarão. Ora, os cômodos espaçosos se limitam a um fundo teatral, com os quais os órfãos interagem pouco. A câmera evita investigar a geografia dos corredores e quartos, utilizar a cozinha, os fundos, os banheiros. Jonas permanece o dia inteiro neste local, sem qualquer ocupação visível. A irmã sai duas vezes para resolver pendências no banco, passa o dia inteiro fora e, na volta, tem um namorado novo — que revela dotes de encanador quando a característica convém à trama.
Jonas e Rebeca são desprovidos de desejos, objetivos, latências. O menino preso ao porão, comportado e asseado ao limite do robótico, jamais provoca qualquer dilema duradouro — e caso os jovens precisem, existe sempre uma barra de ferro ou martelo à disposição. A narrativa carece de tensão, de um senso de urgência ou inevitabilidade: na ausência de planos ou vontades definidas, os heróis somente vagam de um lado para o outro. Eles não têm comida em casa, mas encontram dinheiro para comprar canos. Guardam um segredo sombrio, porém deixam a porta da frente aberta. Mantêm uma avó debilitada no andar de cima, ainda que jamais cuidem de fato dela.
A ausência de drama e desenvolvimento se torna tão flagrante que os atores ficam perdidos em suas composições. Giovanni de Lorenzi compõe um adolescente de intensidade cinco graus acima do verossímil, sempre prestes a explodir, evitando oscilações na construção deste menino de imaginário gótico, cabelos sujos e olhar vidrado. Já Carolina Marques da Costa imagina uma garota de fala apática, olhar desafetado, blasé — razão pela qual os gritos de surpresa e dor, adiante, soam desproporcionais. A direção não constrói uma única cena de intimidade entre as figuras supostamente fusionais.
Por isso, eles soam indiferentes e explosivos; infantis e adultos demais na decisão de cuidar da avó doente e da criança presa. São, ao mesmo tempo, pais e filhos, além de marido e mulher simbólicos, ou ainda carcereiros e prisioneiros; sequestradores e vítimas. O Porão da Rua do Grito decepciona sobretudo face ao potencial que tinha em mãos, no que diz respeito à representação da libido, do luto, do fetiche. O Que Terá Acontecido a Baby Jane?, O Iluminado, Louca Obsessão e Os Outros são referências possíveis, ainda que habitem um horizonte distante.
Resta a configuração de uma produção polidíssima, com imagem ultra nítida, focos de luz preciosos e recortados como num spot publicitário, além de trilha sonora invasiva e efeitos bruscos de som para sugerir medo e surpresa. A pós-produção se esforça para imprimir o medo e o horror ausentes nas imagens — com a exceção de duas cenas gore, que rompem com a linearidade dos jovens desinteressados. Não é difícil imaginar esta produção num serviço de streaming, que parece apropriado a esta ambientação contemporânea, brilhosa, asséptica.
Enquanto primeira experiência na direção de longas-metragens, a obra revela a coragem de sua autora, que já havia experimentado o cinema de horror enquanto atriz. O cinema brasileiro precisa se lançar nas águas do cinema de gênero para testar seus limites e à adequação à cultura nacional — caso em que alguns filmes serão mais bem-resolvidos do que outros. Em contrapartida, o resultado não resolve a contento o encontro entre o horror de séculos atrás e sua versão contemporânea, entre a simbologia e a concretização, ou ainda entre a dramaticidade e o horror.