“Não queria chocar, apenas mostrar o óbvio de uma vida trans”, afirma Danny Barbosa, diretora de Pedra Polida

Na 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes, as mostra de curtas-metragens trouxeram os melhores filmes da edição, em especial a seleção da forte Mostra Foco, que incluía as propostas mais ousadas, e também mais maduras, de novos realizadores.

Um destes destaques foi Pedra Polida, de Danny Barbosa. O filme acompanha a vida de Safira, uma enfermeira negra e transexual da periferia. Apesar de alguns olhares de desprezo na região onde vive, ela desempenha seu ofício com segurança, enquanto se desprende de um amor tóxico e experimenta o afeto de um novo rapaz. O curta-metragem transparece uma bela naturalidade, contando com ótima atuação de Sophia Williams no papel principal.

O Meio Amargo conversou com a diretora a respeito do projeto:

Danny Barbosa na 26ª Mostra de Tiradentes. Foto: Paulo Roberto

Um olhar de cronista

A cineasta credita o naturalismo de seu filme à maneira como observa o cotidiano:

“É um roteiro despretensioso, de narrativa direta, reta, objetiva, que quer se comunicar. Enquanto roteirista, posso dizer sou cronista. Sou formada em letras pela Universidade Federal da Paraíba, e desde adolescente eu escrevia textos, pensamentos. Só depois de formada eu percebi que tudo aquilo que vinha escrevendo eram crônicas. Isso se reflete no roteiro de Pedra Polida, que traz uma observação dos detalhes de uma vida simples. Para muitas pessoas, essas questões poderiam ser apenas um detalhe. O filme procuradespertar nossos olhares para o que é básico, poético, mesmo comum”, explica.

O foco no mundo ao redor justifica, inclusive, a profissão da protagonista: “Minha mãe era da área da saúde”, relembra. “Uma mulher muito forte, que tinha um espírito de generosidade muito grande. Ela era a enfermeira do bairro. Todo mundo por perto, que tivesse algum problema de saúde e que ela pudesse tratar em casa, ela fazia e nem cobrava nada. Foi uma forma de homenagear a minha ancestralidade, a minha mãe”. 

Nos referindo especificamente às pessoas trans, temos dores, mas também temos alegrias, temos sonhos. Falar somente de dor não me faria bem enquanto ser humano.

Sonhos e conquistas de pessoas trans

Em afinidade com o aspecto leve, o curta-metragem evita reforçar as tragédias que afetam tantas pessoas transexuais no Brasil. A transfobia está presente, porém em segundo plano, e não consiste o motor da trama.

Pedra Polida tem várias temáticas. Não sou a pessoa que se foca no negativo, apenas na dor”, justifica a diretora. “Todos os seres humanos têm dores. Mas nos referindo especificamente às pessoas trans, temos dores, mas também temos alegrias, temos sonhos. Falar somente de dor não me faria bem enquanto pessoa, ser humano. Pessoas trans não são apenas dores, sofrimento, marginalidade”, sublinha.

Barbosa parte de seu próprio exemplo. “Sou reflexo disso: uma pessoa preta, da periferia de uma cidade nordestina. Mas eu acreditava sempre no que ouvia em casa: que eu precisava estudar para ser gente, independentemente do que fizesse com meu corpo e sexualidade. Não queria dar para as pessoas aquilo que elas já esperavam de pessoas trans. Também não queria chocar, apenas mostrar o óbvio de uma vida trans”.

Sophia Williams em Pedra Polida. Foto: Divulgação

Um elenco “pronto”

Por se concentrar em vivências próprias, ou naquela de pessoas próximas, a cineasta poderia encarnar o papel principal, de uma mulher de sua idade. No entanto, ela preferiu escalar Sophia Williams, vista recentemente no curta-metragem Inabitável, de Enock Carvalho e Matheus Farias:

“Eu queria um projeto em que pudesse me focar na direção e na condução do roteiro. Então não poderia estar na frente da câmera. A Sophia foi um encontro do universo. Nós não nos conhecíamos pessoalmente. Quando vi o trabalho dela em Inabitável, pensei: será que essa atriz toparia? O primeiro nome foi ela, e ela aceitou prontamente. É uma atriz incrível, muito dedicada e disciplinada”.

Williams, de fato, possui uma entrega de grande naturalidade em frente às câmeras, embora a cineasta garanta que os méritos recaiam sobre a talentosa atriz: “Em relação à preparação e aos ensaios, não tivemos trabalho porque o elenco veio preparado. Eles chegaram prontos. Fizemos um trabalho de preparação, mas tive muita sorte de o universo me mandar essas pessoas para contar a história. Foi feito com muito afeto, com o talento que cada um já trouxe”

Quanto aos dois personagens masculinos principais, Edson (interpretado por Márcio de Paula) pode ser visto como antagonista, pela maneira como trata a namorada. No entanto, Barbosa explica que esta relação possui nuances:

“O Edson, inicialmente, pode ser lido como um aproveitador, um machista, um vilão nessa trama. Mas ele se torna vítima também. Ele é vítima do ambiente que o cerca. Ele cresceu num lugar de homem que precisava estar com uma mulher cis, mas, no íntimo, ele nutria um amor pela Safira. Quando chega o Léo do Gás, personagem do Paulo Philippe, a proposta era dizer que existem amores possíveis. Para pessoas transgênero, isso não é uma utopia. São relações possíveis. Conheço mais de um exemplo de casais de homem cis com uma mulher trans, ou casais diversos, que vivem suas alegrias e felicidades, e dizem para o mundo exatamente isso: essa relação é possível”.

A proposta era dizer que existem amores possíveis. Para pessoas transgênero, isso não é uma utopia.

Um set de aprendizado para todos

Questionada sobre o trabalho com as demais equipes, principalmente de direção de fotografia e direção de arte, a cineasta confessa que muitas escolhas partiram destes profissionais: “Como Pedra Polida é meu segundo projeto assinando direção e roteiro, eu mais ouvi a fotografia do que indiquei. Não posso tirar o mérito da minha equipe, porque eles leram o roteiro e entenderam a proposta”.

“Trocamos ideias, mas deixei claro que, nesse ambiente, ainda estou chegando”, explica. “Queria ver o que eles estariam me propondo. Mas ficou claro que a estética não poderia ser espetacular, porque não seria condizente com o próprio texto. Deixei a minha equipe de fotografia livre para pensar e me trazer propostas. Fomos dialogando e chegamos nesse lugar da naturalidade”.

“Quanto à direção de arte, escrevi os primeiros tratamentos do roteiro com bastante detalhes para que, antes de ver na tela, a gente pudesse ler no texto os lugares onde ela vive e frequenta”, declara a diretora. “Tentei trazer no roteiro o máximo de informações para que a equipe de direção de arte tivesse essa liberdade para criar a partir do que compreenderam”.

Neste sentido, a criação foi conjunta e coletiva. “Quando a gente pensa num ambiente, numa caracterização, às vezes surge mais de uma proposta interessante aos olhos dos diretores de arte. Recebi muitos telefonemas e fotos, dizendo que tinham encontraram vários elementos de que gostavam, e eu precisava escolher entre eles. Era um set de formação mesmo para quem já está dentro do audiovisual. Eles nunca tinham feito direção de arte antes. Havia imagens imprescindíveis ali: uma estátua de Iemanjá, por exemplo, que tem a ver com o sincretismo, com a ancestralidade de Safira. O roteiro já trazia muitos detalhes”. 

Danny Barbosa na 26ª Mostra de Tiradentes. Foto: Paulo Roberto

Tiradentes, janela para o cinema brasileiro

A propósito da seleção na Mostra de Tiradentes, Danny Barbosa confessa a surpresa e a honra de se encontrar entre alguns dos melhores curtas-metragens produzidos no Brasil:

“Eu não tinha noção do que era. Sabia que era um grande festival. Pedra Polida estreou no Kinoforum, e quando nos inscrevemos em Tiradentes, eu queria que circulasse, mas sabia que teria muita gente boa se inscrevendo. Pensei que eu provavelmente ficaria numa suplência. Quando recebemos a confirmação, foi motivo de muita alegria. Passamos a divulgar que estaríamos na Mostra de Tiradentes, e as pessoas vinham falar aquilo que a gente já sabia: era uma grande mostra, uma janela super importante“, confessa.

Passada a experiência no evento mineiro, ela detalha os aprendizados retirados desta edição: “Pude acompanhar o trabalho de outros realizadores. Estive no meio dos grandes, e isso foi muito bacana. Não menosprezo nem saboto meu projeto, mas talvez eu me sentisse pequena e iniciante nesse processo. Depois percebi que estava entre os grandes; então somos uma força, somos grandes, sim. Havia o trabalho de artistas do Ceará, do Espírito Santo, de São Paulo: é uma resistência muito forte. Vamos continuar existindo e resistindo, porque a arte é essa mola que move com as pessoas. O mundo sem arte seria uma porcaria”.

A este respeito, a artista se mostra realista em relação ao novo governo, que recriou o Ministério da Cultura e prometeu destinar verbas ao audiovisual.

“A gente saiu do deserto. Agora queremos beber dessa fonte mesmo. Queremos regar a nossa horta, o nosso jardim, para florescer. Acredito nisso. A partir deste mês de janeiro, com o novo governo, vamos florescer. A primavera chegou. Tentaram, mas não conseguiram detê-la, como diz o excelentíssimo presidente. Se resistimos a esse período sujo da nossa história, vamos florescer e frutificar. Nesse momento de 2023, os roteiros serão novamente retirados da gaveta, onde foram obrigados a ficar. Tenho fé, e estou na expectativa de que serão quatro anos benéficos, de muito trabalho”, conclui. 

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