O Rancho da Goiabada, ou Pois É, Meu Camarada Fácil, Fácil Não É a Vida (2024)

Corta cana lava prato vende filme

título original (ano)
O Rancho da Goiabada, ou Pois É, Meu Camarada Fácil, Fácil Não É a Vida (2024)
país
Brasil
Linguagem
Documentário, Drama, Comédia
duração
72 minutos
direção
Guilherme Martins
elenco
Alex Rocha, Mariana Ser, Bira Nogueira
visto em
13º Olhar de Cinema — Festival Internacional de Curitiba

Dentro do ônibus, um vendedor ambulante oferece sua coleção de DVDs piratas de filmes brasileiros. Há cópias de Morte e Vida Severina, Deus e o Diabo na Terra do Sol, Branco Sai, Preto Fica, A Cidade é Uma Só?. Os passageiros admiram, incrédulos, esta tentativa de popularizar a arte nacional. Os espectadores que acompanham a produção de curtas-metragens brasileiros devem reconhecer a premissa de Rancho da Goiabada (2019), que o cineasta Guilherme Martins expande ao formato longo. 

O autor preserva o dispositivo central: o encontro de um personagem de ficção com pessoas verídicas. Alex Rocha interpreta este homem que trabalha como vendedor, lavador de pratos num restaurante e cortador de cana, para conseguir se sustentar. Esta é a oportunidade de descobrir aquilo que os verdadeiros trabalhadores precarizados pensam de suas vidas, de sua profissão, dos baixos salários recebidos. “Você é feliz?”, ele dispara ao funcionário do restaurante, tal qual Jean Rouch e Edgan Morin faziam em Crônicas de um Verão.

O Rancho da Goiabada, ou Pois É, Meu Camarada Fácil, Fácil Não É a Vida recorre à hibridização das linguagens, permitindo que a ficção sirva de catalisador ao documentário, um estímulo externo para que os criadores obtenham as respostas desejadas previamente. Por isso, Alex instiga, provoca, caçoa dos colegas, até se abrirem e revelarem os planos e desejos. Eles compartilham, então, o motivo que os levam a permanecer nas plantações de cana, por exemplo, ou a decisão que tomariam caso recebessem mais dinheiro.

No lado positivo da experiência, nota-se a crença de que a sociedade brasileira, em suas contradições e falhas, pode ser muito bem compreendida a partir das relações de trabalho.

O herói vai além, plantando em cada um destes operários uma semente de indignação, de revolta política. Conduz seus interlocutores a concordarem que são, de fato, explorados, e que tamanho esforço mereceria maior reconhecimento e remuneração. Ele se converte num palestrante que, percebendo a consciência de classe modesta de seus colegas, decide ensiná-los a lutar por seus direitos. A destreza do ator principal com a linguagem popular, e sua capacidade de improviso, tornam-se fundamentais para que as interações se desenvolvam em frente às câmeras.

No entanto, a ingerência do homem pode soar excessiva. Em múltiplas ocasiões, ele demonstra maior vontade de falar do que de escutar, algo que prejudica o projeto movido pelo desejo manifesto de conhecer o outro. Alex nunca interrompe o fluxo de piadas, de sugestões, cortando as falas dos colegas com frequência para verbalizar seus pensamentos. Ele corre o risco de chamar atenção demais a si próprio, convertendo-se no verdadeiro objeto de estudo do filme, ao invés de seu mediador. Outros filmes brasileiros motivados por um dispositivo semelhante, caso de Currais (2019), preferiam deixar o personagem fictício em posição menos intrusiva em relação ao meio.

Narrativamente, Martins toma uma série de riscos ao abandonar a condução clássica e introduzir uma série de letreiros que se comunicam livremente com os acontecimentos. “Os boias-frias” dialoga na mesma categoria de “Bife acebolado e batatas fritas”? As cenas em preto e branco completariam, ou provocariam uma fricção, com aquelas em preto e branco? Por que algumas conversas no plantio demonstram cores queimadas, saturadas e profundas, contra o cinzento dessaturado dos colegas de restaurante, durante a pausa para o cigarro?

O filme jamais costura a infinidade de elementos dispersos quase aleatoriamente pelo percurso. Que papel teria a musa sedutora em preto e branco, neste filme de olhar e interesse tão masculinos? Por que o autor decide mencionar, apenas no final, os ataques a povos originários e a judeus — violências estas desprovidas de mínima contextualização? De que serve mencionar Bolsonaro por alto, sem elaborar nenhum discurso a respeito do ex-presidente? Seria a simples menção ao político de extrema-direita um valor em si próprio? 

No lado positivo da experiência, nota-se a crença de que a sociedade brasileira, em suas contradições e falhas, pode ser muito bem compreendida a partir das relações de trabalho. Martins decide escutar os grupos silenciados em meio a uma precarização percebida como “natural”. Quantos filmes dão voz e protagonismo a lavadores de pratos reais, para responderem se são felizes? Por mais ingênua que seja a proposta — sustentando orgulhosamente a sua inocência em meio ao caos estético —, ela transmite uma compreensão progressista de base. É preciso, em primeiro lugar, escutar o povo e lhe conferir o ponto de vista.

Em contrapartida, o filme desperta a incômoda impressão de não possuir material suficiente para completar a duração de um longa-metragem. A premissa estava muito bem elucidada no curta anterior, razão pela qual se questionam os motivos que levaram o criador a repetir cenas e procedimentos sem realmente aprofundar as interações. O resultado confunde anarquia com desorganização — dois conceitos que, historicamente, nunca conviveram. Por mais louvável que seja defesa de demolir padrões de linguagem, ainda se constrói pouco por cima dos escombros.

O Rancho da Goiabada, ou Pois É, Meu Camarada Fácil, Fácil Não É a Vida (2024)
6
Nota 6/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.