Em 1967, o drama Apenas uma Mulher (The Fox, no original) apresentou a história de um casal lésbico encarregado da manutenção de um rancho. Elas encontravam dificuldades de fechar as contas, até que a chegada de um homem forte transformou a dinâmica local. Uma das duas fazendeiras se apaixona pelo sujeito misterioso e abandona a namorada, que termina a trama esmagada pela queda de uma árvore gigantesca. Já o casal heterossexual vive feliz para sempre. O filme dirigido por Mark Rydell é considerado, ainda hoje, um marco da lesbofobia e do comportamento punitivista em relação às homoafetividades.
Uma premissa muito semelhante surge no brasileiro O Sol das Mariposas. Marta (Anidria Stadler) vive deprimida desde a partida do marido, há dois anos. Incapaz de gerenciar a fazenda sozinha, encontra-se à beira da falência, tendo como único suporte o afeto de Juliana (Camila Jorge), veterinária apaixonada pela patroa. Mas o retorno inesperado do esposo acentua, de maneira cruel, a opressão de gênero, especialmente por se tratar de um cenário sulista e interiorano dos anos 1970. As duas mulheres frágeis sucumbem com facilidade à mão tirânica do proprietário.
Os criadores parecem certos de apresentarem ao público um libelo feminista, denunciando problemas estruturais graves. Em vertente muito próxima àquela de O Barulho da Noite (2023), estimam que, quando mais violenta for a ação masculina, e mais vitimizada for a posição feminina, mais potente será o grito por justiça. Recorre-se a um maniqueísmo exemplar e, por este mesmo motivo, apartado da realidade. A máxima reação que a passiva Marta conseguirá esboçar, numa cena que se pretende fortíssima, será um tiro solitário aos céus. Neste caso, não há árvores para esmagar o marido estuprador.
Existe certo conformismo diante das violências, tanto por parte dos personagens, quanto por parte do filme, que admira as desigualdades através de uma beleza bucólica, plácida.
Os aspectos questionáveis acerca da representação social aparecem desde as primeiras cenas. No idílio do terço inicial, a doce patroa vive numa harmonia utópica com os empregados, que são praticamente parte da família. Eles se veem privados de salário, mas tudo bem, seguirão trabalhando em nome do amor à fazenda. Presenciando a postura lânguida da chefe, exclamam: “O jeito é ajudar Dona Marta e tocar as coisas a gente mesmo”. Em outras palavras, um grupo tão solícito e bondoso quanto conformado com sua miséria. Numa escala que vai de Propriedade a O Sol das Mariposas, o quanto você ama seus patrões?
O estranhamento prossegue pela naturalidade com que as relações são abordadas. Há uma criança pelas redondezas — possivelmente, a garotinha mais silenciosa e comportada do mundo. Dois anos se passaram desde a partida de Rodolfo, porém, os vizinhos, que frequentam o casarão com frequência, ainda não compreenderam o evidente abandono. Existe certo conformismo diante das violências, tanto por parte dos personagens, quanto por parte do filme, que admira as desigualdades através de uma beleza bucólica, plácida.
A reação feminina às ameaças masculinas apenas se materializa no longa-metragem no terço final, quando o filme “de arte” se converte num melodrama clássico e exagerado, próximo das telenovelas. Até então, a montagem dilatava os planos, enquanto a direção de fotografia abria ao máximo os enquadramentos, em mais de uma dúzia de paisagens campestres fotografadas em todos os períodos do dia. A equipe visa impressionar pelo valor de produção, ou seja, a riqueza natural que conseguiu apreender.
Apesar da direção de fotografia muito cuidadosa de André Senna, as luzes e cores queimadas, apoiadas por contraluzes impressionistas, parecem contar uma história diferente do calvário fatalista de Marta. A fotografia acredita se encontrar numa obra de Victor Erice ou Carlos Saura, repleta de simbolismos e psicologismos. No entanto, a mise en scène aposta num realismo social de denúncia, onde toda dor precisa ser exteriorizada e explicada com clareza (vide o estupro e a tentativa de homicídio). Trata-se de duas abordagens quase opostas.
O trabalho igualmente preciosista de Lucas Maffini e Débora Opolski recheia a banda sonora de ruídos, sons de cavalo e estímulos da natureza, de maneira mais naturalista possível. No entanto, a melancolia perene de Marta (que mata por acidente o cavalo querido ao se vingar simbolicamente do marido com uma fogueira) contradiz este movimento. O filme hesita a todo instante entre representar esta realidade como acredita que ela seja, e como acredita que ela poderia ser; ou ainda em ser sutil para corresponder a um imaginário de elegância, ou hiperbólico, para esclarecer sua mensagem ao público médio.
Por isso, a cozinheira da casa habita um drama singelo, enquanto o marido fugidio pertence a um folhetim. A encenação de estupro conjugal pende a princípio para a mensagem política, embora o trabalho ostensivo de luzes, cores e um espelho que muda progressivamente de ângulo (enquanto os sons sugerem prazer feminino na violência) demonstrem as limitações evidentes deste ativismo. O cineasta Fábio Allon deseja fazer um filme violento a respeito de pessoas revoltantes, contanto que permaneça belo, elegante, minimalista e contemplativo. A conta não fecha.
No final, O Sol das Mariposas desperta a impressão de um projeto conceitualmente desequilibrado, como se os diferentes setores criativos (fotografia, som, montagem, direção de arte) não se comunicassem uns com os outros. Apontam a estéticas distintas, mensagens diferentes e, sobretudo, visões de mundo praticamente excludentes. O elenco demonstra comprometimento, e as intenções são claramente válidas. No entanto, os meios para a construção de tal libelo feminista se perdem numa produção pouco coesa, que aparenta fetichizar a mesma violência que planeja denunciar. Muitas décadas atrás, vale lembrar, Apenas uma Mulher também acreditava denunciar a opressão contra mulheres.