O Trem da Utopia (2021)

O cinema que pisca

título (ano)
O Trem da Utopia (2021)
país
Brasil
gênero
Documentário
duração
94 minutos
direção
Beth Sá Freire, Fabrizio Mambro
visto em
Cinemas

É preciso discutir montagem. Existe um abismo separando o material bruto de O Trem da Utopia (2021) e a versão final disponível no cinema. Para além de agenciar a imagem, determinar o ritmo e o tom, promovendo atritos e conversas entre trechos distintos, a montagem deste documentário vai além. Os segmentos captados são intensamente fragmentados, dispersos, decorados, sobrecarregados de letreiros, falas e músicas. Corta-se e cola-se com uma velocidade frenética, maníaca, como se os olhos não tivessem o direito de repousar sobre um plano durante mais de três ou quatro segundos.

O estilo picotado e velocíssimo do longa-metragem constitui um exercício raro no cinema documental. Introduz-se no projeto politizado e de baixo orçamento algumas ferramentas mais comuns aos spots publicitários, lyric videos e conteúdos previstos para o ritmo efêmero das redes sociais. A música em italiano se sobrepõe à fala em português e aos letreiros em inglês, enquanto o protagonista caminha pelas cidades, de maneira descompromissada, fingindo ignorar a presença da câmera ao seu lado.

Os letreiros constituem um elemento à parte. Eles não se interrompem jamais, servindo ora para reiterar aquilo que os personagens dizem, ora para contextualizar cidades, países e, em outros momentos, oferecer explicações históricas que nem as imagens in loco, nem os depoimentos, dão conta de transmitir sozinhos. Há letreiros dançantes, multiplicados, animados, em negrito, de tamanhos variados, sobre tela preta ou sobrepostos à paisagem urbana. A palavra escrita se torna um personagem autônomo, disputando a atenção do espectador em meio à reunião barulhenta de estímulos. 

Em paralelo, salta-se de São Paulo para Roma, então de volta ao Bexiga, e num segundo, corta-se para Milão, antes de voltar ao Brás. Uma cozinheira fornece metade de uma receita, interrompida pela montagem; amigos italianos se apresentam num jantar, porém jamais saberemos ao certo quem são. Alguém retorna dez minutos depois — seria a mesma pessoa da sequência anterior? Qual era o nome dela mesmo? Pouco importa: é preciso correr, saltar a outro país, outro letreiro e temática. Fala-se de fascismo, ragu, Marielle Franco, música indie-pop italiana, Lina Bo Bardi, a temperatura ideal das pizzas. Nenhum tema se esgota antes de o seguinte entrar em cena: eles disputam a concentração do espectador simultaneamente.

O estilo picotado e velocíssimo do longa-metragem constitui um exercício raro no cinema documental.

Tal estilo poderia servir para conferir dinamismo a imagens estáticas demais, posadas em excesso. Ora, até a captação de O Trem da Utopia se impregna deste cinema em modo jam session: a câmera na mão treme de um lugar para o outro; o som direto às vezes se perde nas internas; a imagem desliza e passeia a esmo. Para um filme tão interessado em tempos e lugares específicos (a diáspora italiana no Brasil, entre os anos do fascismo e a ultradireita brasileira contemporânea) surpreende a vontade de estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Falta silêncio, concentração e capacidade de contemplação diante do caótico brainstorming audiovisual. 

Uma vez que os olhos se acostumam ao ritmo e tom particulares, as riquezas na obra se tornam evidentes. Os diretores Beth Sá Freire e Fabrizio Mambro conseguem analisar a cultura e a História de modo indissociável, o que constitui um gesto político em si. É louvável a decisão de pensar a culinária, a história, o futebol e a música enquanto componentes de uma identidade única e complexa. Em paralelo, compreende-se com clareza o posicionamento progressista, tão focado em passagens históricas quanto em símbolos posteriores (estátuas, praças, museus). O passado e o presente estão intimamente conectados, assim como a Itália e o Brasil se tornam vizinhos interligados pela iminência de forças repressivas.

Em contrapartida, a experiência desperta a impressão de ser explicativa e confusa em igual medida. Por um lado, os personagens passam o documentário inteiro expondo, com clareza didática, os motivos pelos quais seus antepassados migraram ao Brasil, e como cada país lida com o histórico de imigração — além do sentimento de pertencimento do estrangeiro numa nova nação. Os letreiros fornecem um sem-número de dados, semelhantes aos textos pedagógicos na entrada de cada galeria de um museu. Busca-se, assumidamente, condicionar a leitura das imagens e alimentar o conhecimento do público com fatos, informações e dados.

Por outro lado, estes pedaços de cultura ficam tão dispersos pela montagem que mal se conectam com os demais a tempo de fomentarem uma reflexão aprofundada antes de passarem a outro tópico adjacente (porém não idêntico, nem necessariamente complementar). É visível que a massa, o futebol e o fascismo podem integrar o mesmo léxico de compreensão nacional, no entanto, estão longe de constituírem consequências lógicas um do outro. A montagem força aproximações ruidosas que despertam um sentimento conflituoso, entre a ousadia frutífera e mera indecisão de estrutura e narrativa.

De fato, o roteiro de O Trem da Utopia parece ter surgido na mesa de edição, uma vez que todas as imagens foram captadas. Os artistas despertam a impressão de, após anos de captura nos dois países, em múltiplas cidades e bairros, sentaram-se e pensaram: e agora, o que fazemos com tudo isso? O resultado possui o mérito de surpreender o espectador, imprimindo um ritmo incomum e distante dos enfadonhos talking heads do documentário jornalístico. Em contrapartida, impede que a discussão farta e complexa se aprofunde por trás de tamanha intervenção em pós-produção.

O Trem da Utopia (2021)
5
Nota 5/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.