Gretel Marín se apresenta. A cineasta cubana explica o momento em que saiu do país para viver na Europa. No entanto, não se considera uma exilada, tampouco cortou laços com a ilha, que ainda visita com frequência. Ela explica a sensação estranha de retornar anualmente e descobrir as ruas idênticas, como se nada tivesse mudado. Ao mesmo tempo, a política nacional alterou radicalmente o regime, graças à abertura progressiva ao capital e às empresas estrangeiras. Ela filma um McDonald’s na região.
Esta voz off guia toda a narrativa. A diretora-personagem revela suas escolhas estéticas, confessando ter pedido ao diretor de fotografia que registre muitas filas e pessoas esperando em parques e praças. “Somos um povo que sabe esperar”, conclui. Ao se deparar com um familiar contrário ao regime e afeito aos objetos de consumo, retruca: “Eu sigo sendo uma idealista”. Marín se encontra em frente às câmeras, na voz off, na direção, na produção, na montagem. Ela constitui a protagonista desta jornada.
Em consequência, sua ótica condiciona as interpretações. Apesar do aspecto contemplativo, a narração jamais perde a oportunidade de oferecer seu ponto de vista, e nos dizer exatamente de que maneira devemos ler aquelas sequências: “A esperança está nas pessoas, e este é apenas o começo”. A artista tem muito a dizer, embora talvez tenha menos a mostrar. As imagens sustentam a impressão de rechearem o discurso sonoro, servindo de exemplificação à tese prévia. Não se investiga Cuba para descobrir algo, e sim para provar uma hipótese preexistente.
Este tipo de autodocumentário está longe de constituir uma novidade, especialmente no Brasil. Cerca de dez anos atrás, o cinema nacional transbordou de iniciativas semelhantes: jovens artistas efetuando diários sinceros sobre si mesmos, captando a relação com os pais, os tios, as interações nos quintais, as refeições na cozinha, as brigas e afagos. A crítica elogiou em profusão o caráter intimista deste filão, além da coragem em abrir sua intimidade a terceiros. Eventualmente, percebeu certa repetição, mesmo um comodismo, nestas produções caseiras, literalmente, cuja ambição estética se limitava à aparência de improviso e espontaneidade.
Há uma interessante ambiguidade na mistura de humildade (a pequena proporção assumida, a autoexposição sem vaidades) e egocentrismo (a crença de que sua vivência seja suficiente para justificar um filme, além de constituir o tema de predileção do artista, que poderia ter se focado na experiência de terceiros).
O Último País (2018) reproduz este cinema de si próprio. Há uma interessante ambiguidade na mistura de humildade (a pequena proporção assumida, a autoexposição sem vaidades) e egocentrismo (a crença de que sua vivência seja suficiente para justificar um filme, além de constituir o tema de predileção do artista, que poderia ter se focado na experiência de terceiros). Ao final, a cineasta agradece “a todas as pessoas que apareceram neste filme”. Seus nomes sequer constam nos créditos finais. Não houve interesse da equipe em nomear as pessoas que ofereceram seus rostos e vozes à obra?
A propósito de entrevistas, a abordagem dos cidadãos cubanos constitui o elemento de maior incômodo do projeto. No cinema documental, os melhores testemunhos provêm de um cenário de conforto e confiança: encontra-se a pessoa, conversa-se bastante, abrem-se portas para algum relato mais íntimo e então, uma vez esquecidas as câmeras, relata-se algo de interesse genuíno às imagens. Eduardo Coutinho foi um mestre neste intervencionismo afetuoso. Os maiores entrevistadores sempre foram aqueles capazes de transmitir a impressão de bate-papo descontraído, ao invés de um relato professoral ou especializado, típico de reportagens jornalísticas.
Em contrapartida, Marín interrompe pedestres com perguntas sérias e abruptas em relação com o embargo a Cuba e as mudanças político-econômicas do país. Assustados, eles rechaçam a intrusão repentina, fogem da câmera — afinal, nem sequer sabem quem está perguntando, e para qual finalidade serão utilizadas as imagens. A criadora utiliza estas não-respostas como prova de que os cubanos seriam reticentes em conversar sobre o tema. Talvez estejam apenas amedrontados pela intromissão precipitada de um tema complexo, como no caso dos amigos se divertindo à noite.
A aparência de um cinema ingênuo, tão espontâneo quanto pouco preparado, se estende às imagens. O documentário trabalha com a textura digital de baixa qualidade, o som vacilante nas transições, e especialmente com a imagem tremida, na mão, hesitando quanto ao enquadramento desejado. Decide-se na hora, de maneira improvisada. Tal urgência se justifica em cenários de crise (em meio a guerras ou manifestações, por exemplo). Aqui, o retrato banal do cotidiano das ruas, e as conversas com os pais dentro de casa permitiriam maior cuidado de imagem, som, além de uma linguagem capaz de refletir a solidão evocada pela narradora.
A câmera perturba os ambientes devido à proximidade intensa de cenários que se pretendia captar com a maior naturalidade possível. As crianças de uma escola ficam desconfortáveis com o dispositivo em frente ao rosto, durante ensinamentos de patriotismo cubano; e a própria cineasta se incomoda quando confrontada ao parente de opinião distinta da sua. Sem saber como responder, oferece a expressão tímida e desconcertada ao colega de equipe, e por extensão, ao espectador. Novamente, a autoexposição busca constituir um valor em si, independentemente do discurso associado.
Ao final, o filme transmite a impressão de um projeto terapêutico, através do qual a artista busca acertar contas com seu passado, e justificar para si própria os posicionamentos políticos e os deslocamentos geográficos adotados nos últimos anos. O espectador permanece em posição cômoda, uma mistura de cumplicidade amigável e acesso voyeur ao diário íntimo alheio. O aspecto que melhor capta esta ambiguidade se encontra na insistência em filmar a cineasta de costas, muito próxima da câmera, porém ignorando sua presença. Este real encenado e um pouco rígido, procurando se passar por despercebido, domina a sessão inteira.
Os melhores momentos provêm do aspecto de contemplação da ilha, das coletividades nas ruas, dos grupos de amigos passeando e comendo. Cada vez que o filme confia na capacidade da imagem em veicular significados sozinha, sem explicações sociopolíticas nem descrições de ordem pessoal, revela a intimidade da diretora com a ilha, o ritmo particular do cotidiano, a cultura, a arquitetura. Cuba teria muito a dizer, por si própria, sem tamanho condicionamento da mensagem.