O Último País (2018)

Cinema de mim mesma

título original (ano)
El Último País (2018)
país
Brasil, Cuba, Angola
Gênero
Documentário
duração
70 minutos
direção
Gretel Marín
visto em
Cinemas

Gretel Marín se apresenta. A cineasta cubana explica o momento em que saiu do país para viver na Europa. No entanto, não se considera uma exilada, tampouco cortou laços com a ilha, que ainda visita com frequência. Ela explica a sensação estranha de retornar anualmente e descobrir as ruas idênticas, como se nada tivesse mudado. Ao mesmo tempo, a política nacional alterou radicalmente o regime, graças à abertura progressiva ao capital e às empresas estrangeiras. Ela filma um McDonald’s na região.

Esta voz off guia toda a narrativa. A diretora-personagem revela suas escolhas estéticas, confessando ter pedido ao diretor de fotografia que registre muitas filas e pessoas esperando em parques e praças. “Somos um povo que sabe esperar”, conclui. Ao se deparar com um familiar contrário ao regime e afeito aos objetos de consumo, retruca: “Eu sigo sendo uma idealista”. Marín se encontra em frente às câmeras, na voz off, na direção, na produção, na montagem. Ela constitui a protagonista desta jornada.

Em consequência, sua ótica condiciona as interpretações. Apesar do aspecto contemplativo, a narração jamais perde a oportunidade de oferecer seu ponto de vista, e nos dizer exatamente de que maneira devemos ler aquelas sequências: “A esperança está nas pessoas, e este é apenas o começo”. A artista tem muito a dizer, embora talvez tenha menos a mostrar. As imagens sustentam a impressão de rechearem o discurso sonoro, servindo de exemplificação à tese prévia. Não se investiga Cuba para descobrir algo, e sim para provar uma hipótese preexistente.

Este tipo de autodocumentário está longe de constituir uma novidade, especialmente no Brasil. Cerca de dez anos atrás, o cinema nacional transbordou de iniciativas semelhantes: jovens artistas efetuando diários sinceros sobre si mesmos, captando a relação com os pais, os tios, as interações nos quintais, as refeições na cozinha, as brigas e afagos. A crítica elogiou em profusão o caráter intimista deste filão, além da coragem em abrir sua intimidade a terceiros. Eventualmente, percebeu certa repetição, mesmo um comodismo, nestas produções caseiras, literalmente, cuja ambição estética se limitava à aparência de improviso e espontaneidade.

Há uma interessante ambiguidade na mistura de humildade (a pequena proporção assumida, a autoexposição sem vaidades) e egocentrismo (a crença de que sua vivência seja suficiente para justificar um filme, além de constituir o tema de predileção do artista, que poderia ter se focado na experiência de terceiros).

O Último País (2018) reproduz este cinema de si próprio. Há uma interessante ambiguidade na mistura de humildade (a pequena proporção assumida, a autoexposição sem vaidades) e egocentrismo (a crença de que sua vivência seja suficiente para justificar um filme, além de constituir o tema de predileção do artista, que poderia ter se focado na experiência de terceiros). Ao final, a cineasta agradece “a todas as pessoas que apareceram neste filme”. Seus nomes sequer constam nos créditos finais. Não houve interesse da equipe em nomear as pessoas que ofereceram seus rostos e vozes à obra?

A propósito de entrevistas, a abordagem dos cidadãos cubanos constitui o elemento de maior incômodo do projeto. No cinema documental, os melhores testemunhos provêm de um cenário de conforto e confiança: encontra-se a pessoa, conversa-se bastante, abrem-se portas para algum relato mais íntimo e então, uma vez esquecidas as câmeras, relata-se algo de interesse genuíno às imagens. Eduardo Coutinho foi um mestre neste intervencionismo afetuoso. Os maiores entrevistadores sempre foram aqueles capazes de transmitir a impressão de bate-papo descontraído, ao invés de um relato professoral ou especializado, típico de reportagens jornalísticas.

Em contrapartida, Marín interrompe pedestres com perguntas sérias e abruptas em relação com o embargo a Cuba e as mudanças político-econômicas do país. Assustados, eles rechaçam a intrusão repentina, fogem da câmera — afinal, nem sequer sabem quem está perguntando, e para qual finalidade serão utilizadas as imagens. A criadora utiliza estas não-respostas como prova de que os cubanos seriam reticentes em conversar sobre o tema. Talvez estejam apenas amedrontados pela intromissão precipitada de um tema complexo, como no caso dos amigos se divertindo à noite.

A aparência de um cinema ingênuo, tão espontâneo quanto pouco preparado, se estende às imagens. O documentário trabalha com a textura digital de baixa qualidade, o som vacilante nas transições, e especialmente com a imagem tremida, na mão, hesitando quanto ao enquadramento desejado. Decide-se na hora, de maneira improvisada. Tal urgência se justifica em cenários de crise (em meio a guerras ou manifestações, por exemplo). Aqui, o retrato banal do cotidiano das ruas, e as conversas com os pais dentro de casa permitiriam maior cuidado de imagem, som, além de uma linguagem capaz de refletir a solidão evocada pela narradora. 

A câmera perturba os ambientes devido à proximidade intensa de cenários que se pretendia captar com a maior naturalidade possível. As crianças de uma escola ficam desconfortáveis com o dispositivo em frente ao rosto, durante ensinamentos de patriotismo cubano; e a própria cineasta se incomoda quando confrontada ao parente de opinião distinta da sua. Sem saber como responder, oferece a expressão tímida e desconcertada ao colega de equipe, e por extensão, ao espectador. Novamente, a autoexposição busca constituir um valor em si, independentemente do discurso associado.

Ao final, o filme transmite a impressão de um projeto terapêutico, através do qual a artista busca acertar contas com seu passado, e justificar para si própria os posicionamentos políticos e os deslocamentos geográficos adotados nos últimos anos. O espectador permanece em posição cômoda, uma mistura de cumplicidade amigável e acesso voyeur ao diário íntimo alheio. O aspecto que melhor capta esta ambiguidade se encontra na insistência em filmar a cineasta de costas, muito próxima da câmera, porém ignorando sua presença. Este real encenado e um pouco rígido, procurando se passar por despercebido, domina a sessão inteira.

Os melhores momentos provêm do aspecto de contemplação da ilha, das coletividades nas ruas, dos grupos de amigos passeando e comendo. Cada vez que o filme confia na capacidade da imagem em veicular significados sozinha, sem explicações sociopolíticas nem descrições de ordem pessoal, revela a intimidade da diretora com a ilha, o ritmo particular do cotidiano, a cultura, a arquitetura. Cuba teria muito a dizer, por si própria, sem tamanho condicionamento da mensagem.

O Último País (2018)
5
Nota 5/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.