Depois de traçar um potente retrato da violência de gênero em O Lobo Atrás da Porta (2013), o diretor Fernando Coimbra alça voos ainda mais altos em Os Enforcados. Ele mira na corrupção dos milicianos e bicheiros do Rio de Janeiro, mostrando como estes grupos disputam o poder, enquanto financiam o Carnaval e dominam ramos econômicos que a polícia fracassa em desmantelar. No entanto, ao invés de o cineasta partir para o estilo sulfuroso de Tropa de Elite e Cidade de Deus, prefere a comédia de costumes.
Vale frisar que não se trata de um humor qualquer. Para o espectador brasileiro habituado à comédia popular em moldes Globo Filmes (com muitas piadas em texto, pouco dinamismo de cena e desdém pela classe trabalhadora), resta a surpresa de encontrar um sarcasmo profundo a respeito do jeitinho brasileiro, pautado na ilegalidade das instituições. Subornos, chantagens, favores, ameaças e outras formas de corrupção e abuso de poder se tornam moeda corrente.
Os diálogos capricham, em termos fortemente conotados para o Brasil contemporâneo: um personagem “não tem provas, mas tem convicção”, tal qual o mau juiz do antilulismo. Outro defende ser um “cidadão de bem”. É evidente que Coimbra mira num raro tipo de comédia ridicularizando as classes opressoras, ao invés das classes oprimidas. Fugindo ao costume de rir das empregadas domésticas e porteiros — segmento preferencial de certo ramo da comédia nacional —, ele estabelece como alvo os patéticos homens no topo da pirâmide. Em outras palavras, o cineasta “samba em cima da cabeça dos inimigos”, assim como Valério (Irandhir Santos).
A obra perde sua força ao satirizar uma prática que não deseja representar de fato. Coimbra pretende ridicularizar os bandidos, sem mostrá-los na prática. Valério e Regina soam como um casal delirante.
Na trama, este peixe pequeno do jogo do bicho divide o cargo com o tio, mais experiente e poderoso na área. Quando percebe uma queda brusca no fluxo de dinheiro (por motivos que ele desconhece), decide sair dos negócios. Ao confrontar o cabeça da operação, acaba matando seu parceiro. Encorajado pela esposa Regina (Leandra Leal) a tomar “o que é seu por direito”, o sujeito sem vocação para o crime abraça o cargo que lhe cai do céu, tornando-se o novo chefe do crime. Então ele precisa agir conforme estima que grandes nomes o fazem. Valério se equilibra, portanto, entre seu temperamento morno e um imaginário de crueldade.
Para os atores, a premissa deve soar fascinante, graças à capacidade de encarnarem personagens-que-interpretam-personagens, numa vertigem de falsidades e performances. Valério constitui um ladrão temeroso, que subitamente precisa agir como líder dos caça-níqueis. Regina sempre ocupou o cargo de esposa troféu pouco inteligente — ela confunde rinoceronte com hipopótamo, teme a chegada do FBI em sua casa —, porém servindo como instigadora do submundo das apostas. Trinta anos atrás, os irmãos Coen teriam se deliciado com uma premissa semelhante.
No entanto, estranha-se a construção vacilante destes personagens pelo roteiro. É difícil acreditar que Valério tenha qualquer envolvimento efetivo na lavagem de dinheiro, afinal, nunca o vemos controlando o crime de fato. O filme não toma o tempo de mostrar o cotidiano de maracutaias — a dupla apenas alude aos “negócios”, do alto de seu casarão em obras. O espectador que acredite nesta ilegalidade meramente aludida em terceira pessoa. Adiante, convertido em mandante, o protagonista executa atos de tal perversidade que soavam impossíveis a este homem pouco talentoso em esquemas ilícitos.
Mesmo a cena de tortura surge de lugar nenhum — novamente, precisamos acreditar que sequestros e outras artimanhas foram executados graças à simples menção em diálogos. Valério teria ligação direta com uma grande escola de samba, embora nunca testemunhamos tal influência. Regina também se mostra capaz de atitudes chocantes rumo à conclusão. Entretanto, inexiste a construção psicológica e de contexto para justificar tais sequências. Trata-se de duas figuras opacas — certamente engraçadas em sua inadequação e despreparo para a corrupção, porém totalmente inverossímeis quando passam a cumprir, com sucesso, as mortes e ameaças exigidas pelo cargo.
Por isso, o trabalho dos atores é prejudicado. Irandhir Santos surge com os olhos marejados ao negociar com o tio, ainda que desconheçamos o peso de tal conversa, capaz de justificar o sentimentalismo. Leandra Leal compõe uma mulher quase exclusivamente afobada, histérica, histriônica e ignorante — uma atualização da Magda de Sai de Baixo, transposta ao Rio de Janeiro. Na ausência do período de dúvidas, reflexão e incerteza, apenas desempenham planos que pareciam incapazes de fazer. O que ocorre entre o ponto A (casal fracassado de novos-ricos) e o ponto B (líderes sanguinários do crime suburbano?).
Além disso, outros elementos incomodam. Após a mise en scène de ameaças de estupro em O Lobo Atrás da Porta, o diretor retoma o fetiche pela violência misógina (de novo, representada contra Leandra Leal). Desta vez, o casal gosta de encenar a presença de um invasor bruto em casa para estimular o apetite sexual. Brincam precisamente que o marido seria um corno manso, indefeso, ao contrário do ladrão viril e penetrante. Através deste jogo, explica-se que ambos manifestam prazer não apenas na violência, mas no imaginário do poder e da potência (de maneira um pouco simplória, enquanto descrição psíquica).
Adiante, o estupro se concretiza para além do jogo consentido entre as duas partes. O que talvez constitua uma tentativa de crítica ao poderio masculino se converte em mero fetiche graças à longa cena, próxima do corpo feminino abusado. O longa-metragem está repleto de indefinições morais deste tipo: ele nunca sabe se considera o cadáver preso na construção como divertido ou grotesco; se acredita que devemos temer pelos personagens ou torcer contra eles. Eles afirmam ser seguidos, embora se ressinta a ausência da perseguição, ou uma proximidade crescente destes inimigos invisíveis.
Por fim, a obra perde sua força ao satirizar uma prática que não deseja representar de fato. Coimbra pretende ridicularizar os bandidos, sem mostrá-los na prática da dita bandidagem. Acredita que baste os personagens falarem que o dinheiro está diminuindo; dizerem que têm um plano; afirmarem que sequestraram crianças, para acreditarmos em suas palavras. Valério e Regina soam como um casal delirante, encenando em suas cabeças um controle do jogo do bicho que nunca possuem na realidade, assim como imaginam uma invasão e um estupro erótico. Não é fácil para o espectador acreditar que aquelas ações estejam ocorrendo fora da casa cafona destinada a representá-los.
Portanto, o resultado interessa mais enquanto intenção do que execução. Irandhir Santos atua num drama criminal, enquanto Leandra Leal claramente vive uma comédia; os dois ameaçam se virar um contra o outro (em estilo Sr. e Sra. Smith), porém, o roteiro abandona este caminho. Sugere-se então que ambos possam enlouquecer, paranoicos com a responsabilidade de seus assassinatos — tal qual uma mistura de Lady Macbeth com Crime e Castigo. Ora, nada disso acontece. Insinua-se que a burrice de ambos possa comprometê-los — pisca que tampouco se materializa. O filme adora imaginar trajetos que se recusa a percorrer. Restam piadas boas e esparsas, razoavelmente conectadas com o Brasil contemporâneo. Apesar de muitos alvos e muitos tiros, poucos disparos acertam a mira.