Os Três Mosqueteiros: D’Artagnan (2023)

Festa à fantasia

título original (ano)
Les Trois Mousquetaires: D’Artagnan (2023)
país
França, Alemanha, Espanha, Bélgica
gênero
Ação, Aventura, Histórico
duração
121 minutos
direção
Martin Bourboulon
elenco
François Civil, Vincent Cassel, Romain Duris, Pio Marmaï, Eva Green, Vicky Krieps, Louis Garrel, Lyna Khoudri, Jacob Fortune-Lloyd, Eric Ruf, Patrick Mille, Ivan Franek, Julien Frison, Thibault Vinçon, Gabriel Almaer
visto em
Cinemas

Os Três Mosqueteiros: D’Artagnan produz uma sensação muito curiosa. Em tese, os elementos esperados de um filme de ação histórico, baseado na obra de Dumas, estão presentes. Os quatro mosqueteiros ao invés de três, as donzelas em perigo, a honra do reino francês, as disputas entre protestantes e católicos. Há amores impossíveis, paixões secretas, perseguições a cavalo na floresta, traições inesperadas, anúncios de guerra ao som de orquestras retumbantes, donzelas em perigo, azarões que provam seu valor, e assim por diante.

No entanto, o conjunto funciona muito mal. Na cena de abertura, por exemplo, um rapaz caminha sob a chuva, de noite. Ele rapidamente se vê preso a uma disputa de espadas, revólveres, socos e chutes. Corre de um lado, esconde-se no outro, percebe uma mocinha frágil precisando de sua ajuda (pobres mulheres, que abrem e fecham a narrativa na função de acessórios sociais à validação masculina). A cena busca tensão e engajamento do público. Mas como torcer para um lado ou outro, se não sabemos quem são? De que maneira poderíamos temer por sua possível morte? Ali, eles se resumem a corpos anônimos, agitando-se aleatoriamente.

A impressão persiste. Mesmo quando o quarteto de espadachins do rei é formado, os personagens ainda possuem motivações opacas e traços ínfimos de subjetividade. Mais tarde, quase no segundo terço da narrativa, recebem uma explicação sucinta de suas personalidades — um é mulherengo, o próximo, amargo, pois envelhecido, e o terceiro, bissexual. Trata-se de pouco para justificar a afinidade do grupo, e para entender o que os move de uma luta à seguinte. Na maior parte do tempo, os protagonistas são passivos: eles correm onde lhes mandam, atrás das informações ou objetos que lhes pedem. Possuem pouca, ou nenhuma iniciativa.

Os dilemas tampouco ajudam a injetar qualquer interesse ao épico. Após o assassinato de uma mulher loira e indefesa (o tema se repete), eles partem em busca de anéis capazes de identificar o verdadeiro culpado. Ora, o motivo das joias e a investigação na casa de poderosos são abandonados sem qualquer efeito para a trama. Adiante, testemunham de maneira improvável o segredo profundo da rainha da França. Em consequência, precisam procurar pelo colar de diamantes capaz de salvar a honra do reino inteiro. (A busca de governantes por colares milionários, trocados de maneira escusa e em segredo, lembram imediatamente, aos olhares brasileiros, as fraudes do casal Bolsonaro).

Mesmo quando o quarteto de espadachins do rei é formado, os personagens ainda possuem motivações opacas e traços mínimos de subjetividade. […] Já os diálogos beiram o constrangimento.

A jornada remete a um game, no sentido de possuir pequenos quiproquós que o grupo precisa resolver antes de partir ao problema seguinte. Pouco importa onde chegarão no final, porque o quarteto não possui nenhum objetivo a longo prazo. Não trazem problemas afetivos, familiares, de saúde, de dinheiro. Não carregam traumas do passado, nem buscam acertos de conta. Desprovidos de passado, e sem pensar no futuro, tornam-se figuras presas a um eterno presente. Quando os chamam, respondem afirmativamente e correm para a missão seguinte. Suas vidas são condicionadas pela demanda de terceiros, razão pela qual soam mais como funcionários explorados do que indivíduos autônomos.

Além disso, o roteiro investe num sem-número de conveniências e coincidências. D’Artagnan (François Civil), o protagonista do primeiro filme (a parte II, Milady, vem em breve), encontra-se sempre no lugar certo, na hora certa, para escutar informações confidenciais ou provar sua coragem. Ele é o único a confrontar a autora de um crime e a ladra de joias. Apenas ele fura uma fila de três dias para a consulta com as autoridades (estranhamente, a fila apresentava apenas uma dúzia de pessoas esperando) e encontra uma mocinha em perigo, sempre disposta a ajudá-lo e costurar suas feridas quando necessário. Ninguém além dele possui tempo para relacionamentos amorosos duradouros.

Os diálogos beiram o constrangimento. Seja porque foram retirados de Dumas sem a devida contextualização, seja porque se limitam a explicações e frases de efeito, eles nunca se encaixam na boca dos atores, nem soam provindos de um ser humano verossímil. Aqui, as pessoas declamam, enunciam, empostam, justificam, mas nunca simplesmente conversam. Reis, cardeais e súditos informam uns aos outros que a França está à beira da guerra com a Inglaterra, e a própria rainha esclarece às criadas que sua honra será atacada com a chegada de um duque britânico. 

Esta foi a única maneira que os roteiristas encontraram para compartilhar informações com o espectador: através de letreiros apressados, no início, e despejando dados e dilemas durante as conversas. A troca entre D’Artagnan e sua pretendente a respeito do coração batendo forte ao vê-la transmite o constrangimento de um longa-metragem incapaz de homenagear o século XVII com a sensibilidade do século XXI. Pelo uso da fotografia digital extremamente nítida, do som fechado numa bolha (sem ruídos, nem dinâmica para além das falas) e dos movimentos de câmera mais próximos de Matrix do que modernidade francesa, soa atual na maneira de filmar, e antiquado na percepção social.

Sobretudo, Os Três Mosqueteiros: D’Artagnan opta por uma paleta dessaturada, que vai do cinza ao bege, sem variações. O filme sem cor nem efeitos expressivos de luz proporciona uma monotonia visual, que as cenas de luta nunca ajudam a romper. Por algum motivo desconhecido, o diretor Martin Bourboulon opta por planos-sequência longos, o que favoreceria a coreografia dos socos e chutes… caso o espectador conseguisse distinguir quem está atacando, e quem está se defendendo. A câmera chacoalha tanto, desnecessariamente e em planos próximos, que apenas produz uma sensação vaga de caos. Sem dúvida, há homens batendo em outros homens.

Sem dúvida, há homens batendo em outros homens. Entretanto, a exemplo do projeto inteiro, eles se tornam intercambiáveis, descartáveis. Serão apenas corpos em deslocamento, desafetados e assexualizados. Mesmo aqueles que aparecem na cama não demonstram paixão profunda nem desejo sexual. Face às lutas em que nunca se enxergam os corpos; aos romances que culminam num doce toque de lábios entre adultos; e aos anúncios de guerra que jamais se concretizam, a obra transmite a impressão de um coito interrompido. Promete uma aventura épica de ação, embora despreze tanto a complexidade das cenas de ação quanto os objetivos da aventura e a linguagem do cinema épico.

O elenco teria constituído um atrativo à parte: Vincent Cassel, Romain Duris, Pio Marmaï, Eva Green, Vicky Krieps, Louis Garrel e Lyna Khoudri constituem um time dos sonhos para qualquer produção. No entanto, ninguém está plenamente confortável com o humor sem timing, a amizade forjada quase por acaso, além das buscas um tanto vazias — por que estes homens se sacrificam pelo rei, se jamais demonstram afeto particular pela pátria? Eva Green, em particular, canaliza uma mistura de Carmen Sandiego com Jessica Rabbit e as femmes fatales genéricas do cinema noir. É uma pena ver um elenco de tamanho calibre desperdiçado desta maneira.

Talvez o resultado da empreitada constitua uma oportunidade de refletir sobre o impacto de bons e maus diretores de cinema. Para os produtores, há todos os fatores necessários ao sucesso — e, verdade seja dita, o projeto conquistou sucesso considerável em seu país, após ter custado exorbitantes €36 milhões. No entanto, um cineasta cuidadoso, e roteiristas mais espertos teriam começado pela construção dos personagens, suas motivações, a formação de laços entre eles. Apenas então teria surgido a luta, a busca por um anel, por um colar, a imersão na guerra… Os conflitos precisam emanar dos humanos, nunca o contrário. Neste caso, Aramis, Athos, Porthos e D’Artagnan parecem quatro colegas de 2023, vestidos para um baile à fantasia. O universo jamais ultrapassa a esfera lúdica do faz-de-conta, pouco investido em termos cinematográficos e conceituais.

Os Três Mosqueteiros: D’Artagnan (2023)
3
Nota 3/10

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