Paixão Sinistra (2023)

Subverter o real por dentro

título original (ano)
Paixão Sinistra (2023)
país
Brasil
linguagem
Experimental
duração
87 minutos
direção
João Pedro Faro
elenco
Miguel Clark, Cosmo Salisme, Antonio Ferraz, Estevão Nogueira, Dedé Maia, Matheus Zenom, Bruno Lisboa, Vinícius Dratovsky, Bruce Barbosa, Pio Drummond, Eduardo Clark, Lorenzo Affinito, Daniel Brito
visto em
27ª Mostra de Tiradentes (2024)

Seria possível iniciar a descrição deste filme por sua sinopse. Indicar os personagens principais, seus objetivos e conflitos. No entanto, Paixão Sinistra não parece ser feito para veicular uma história específica, ou no intuito de destacar uma mensagem em particular. Julgando pela experiência, talvez a construção do filme tenha surgido em ordem inversa: primeiro surge a vontade de trabalhar com tais recursos de linguagem, certas texturas e recursos estéticos, e só então se concebe a trama capaz de recheá-la.

O diretor João Pedro Faro propõe uma viagem que, por um lado, remete ao Cinema Marginal, e por outro, oferece escolhas de mise en scène próprias, possíveis apenas em tempos de um audiovisual digital e barato. Digamos que as falhas, ou deficiências de produção, são percebidas, assumidas e explicitadas à enésima potência. Em oposição a tantos criadores que buscam disfarçar ou atenuar as limitações do baixo orçamento, a turma da MBVideo a veste enquanto armadura da qual se orgulhar.

Isso significa que os ruídos captados nas ruas do Rio de Janeiro são incorporados e aumentados ao limite do incômodo. Bruno Lisboa, que assina a produção, montagem e som, se diverte ao transformar a intervenção “natural” numa extrapolação “artificial”. Cachoeiras e carros têm seus barulhos caricaturados até perturbarem os sentidos. Aí, quando se espera uma linguagem recorrente do choque, entra em cena a personagem cantando belamente, a cappella, sentada em sua cama. Os criadores sabem quando dar uma rasteira no espectador.

Um exercício de teor despojado, porém muito bem pensado e executado — um profissionalismo extremo por trás da aparência conveniente de amadorismo, ou do trash.

A jornada se desenvolve por meio desta estrutura de tensão e relaxamento, ou de impacto emocional e reflexão cinéfila e filosófica. Personagens exagerados ao limite do cômico transitam pelas ruas do centro do Rio de Janeiro, sendo percebidos (junto ao resto da equipe, é claro) enquanto elementos dissonantes no meio. O artifício se confronta a um cinema documental, espontâneo, tal qual uma performance urbana. Como as pessoas reagiriam à ficção levada diante de seus olhos, no meio da rua, tal qual um cinema itinerante?

Enquanto a ficção caminha em direção ao mundo, aspectos do mundo fatual e científico se incrustam numa trama rocambolesca de sequestros e assassinatos. Conforme um chefe do crime planeja seus próximos passos, e outro mantém um jovem em cativeiro, uma narração em off explica a melhor maneira para cometer um assassinato. Onde enfiar a faca, de que maneira retirá-la? Quais seriam as vantagens do sequestro? A voz-guia lista alguns pontos ao espectador: a fuga da solidão, a atenção constante sobre si, a percepção de termos mais tempo livre do que imaginávamos.

Paixão Sinistra está repleto de referências, citações, inspirações diretas ou indiretas de outros filmes, além de correntes e chavões do cinema de gênero. Felizmente, jamais se limita ao easter egg, ao prazer simples de identificar elementos alheios numa narrativa inédita. Os estímulos são triturados e recombinados até se incorporarem de maneira orgânica à massa. Em nenhum momento soa como uma colagem dispersa de elementos emprestados a terceiros. A coesão autoral e conceitual salta aos olhos.

Supera-se, deste modo, a impressão frequente de que a linguagem experimental estaria fadada à dispersão, a uma liberdade caótica culminando na aleatoriedade. Faro constrói uma obra incrivelmente coesa, tanto em termos de ferramentas narrativas quanto de linguagem. Cada personagem retorna até concluir seu percurso; a invasão à casa de Watanabe ganha seu devido desfecho; o sequestro recebe um término bastante clássico. Os procedimentos de som estourado, da repetição de imagens e gadgets (óculos escuros, algemas, canivete, tapa-olho) e inserts (a dupla mascarada na floresta) se encerra com devido cuidado com a produção de sentidos. Nada aparenta ter sido feito por acaso, ou com desleixo.

Assim, comprova-se a possibilidade de um cinema de baixíssimo orçamento, dotado de impressionante rigor formal. A montagem imprime um ritmo cirúrgico, de grande dinamismo, porém sem converter a manipulação destes recursos num objetivo em si. Em outras palavras, Paixão Sinistra foge à armadilha de constituir mero gesto de vaidade da direção, ou uma diversão banal entre amigos. Nota-se uma reflexão excepcional para determinar onde se posiciona a câmera, de que maneira se unem duas imagens, como dirigir estes corpos-performance na cidade.

Em consequência, surge um humor sério, do tipo que surpreende pela gravidade com que anuncia absurdos. Menções a personagens e passagens da Bíblia se combinam com devaneios profanos (“Moisés viu a bunda de Deus”). Críticas ao autoritarismo brasileiro e à corrupção de um sistema político se transformam no relato sobre a “Operação Fu Manchu”. Faro jamais traz elementos externos para explodir o mundo, transformando-o numa viagem lisérgica pura. Ele prefere manter um pé no real, e outro, na fantasia. Assim, implode suas referências, contamina-as, parasita-as. Fagocita e se funde à forma de cinema que admira.

Aos atores, cabe a tarefa de representarem corpos presentes, que nunca atuam no sentido clássico do termo (de composição, psicologização, aprendizado do texto). Em contrapartida, oferecem-se à imagem, ao jogo, com um despojamento capaz de driblar tanto o deboche quanto a seriedade extrema das citações e da automportância. 

Trata-se de um exercício de teor despojado, porém muito bem pensado e executado — um profissionalismo extremo por trás da aparência conveniente de amadorismo, ou do trash. Desta cinefilia aplicada, reinventada e questionadora, surgem as propostas mais instigantes do cinema brasileiro contemporâneo. 

Paixão Sinistra (2023)
10
Nota 10/10

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