Palimpsesto (2023)

Ficção não-científica

título original (ano)
Palimpsest (2022)
país
Finlândia
gênero
Drama
duração
109 minutos
direção
Hanna Västinsalo
elenco
Riitta Havukainen, Emma Kilpimaa, Krista Kosonen, Kaisu Mäkelä, Leo Sjöman, Antti Virmavirta
visto em
Mostra de São Paulo 2023

A priori, este projeto finlandês se comunicaria em especial com fãs de ficção científica. A cineasta Hanna Västinsalo imagina um novo procedimento médico capaz de rejuvenescer pessoas idosas, que mantêm o conhecimento e intelecto avançados. Pouco tempo depois de iniciado o tratamento, aparentam ter 60 anos de idade, e depois 50, 40, 30. Ninguém os distinguiria de outros adultos comuns pelas ruas — eles simplesmente voltam no tempo. 

No centro da trama estão Tellu e Juhani, escolhidos para testar o processo experimental. Os dois têm pouco mais de 80 anos, e apesar de não se conhecerem, passam a dividir um quarto de hospital durante as intervenções. Ele possui um ar cabisbaixo e entristecido, por ter se afastado da esposa moribunda. Ela faz piadas, brinca com todos, intervém nos dilemas alheios. Ele representa o drama, e ela, a comédia.

Ora, alguns detalhes começam a incomodar no andamento de uma premissa tão criativa. Nunca acompanhamos em imagens a prática inovadora capaz de transformar por completo os protagonistas. Eles retornam ao quarto cada vez mais novos, e comemoram a mudança. Mas como isso ocorre? Em que consiste o tratamento? Possui um componente cirúrgico, ou apenas medicamentoso? Quem o descobriu? Possui efeitos colaterais? Surte efeitos imediatos? Como se sentem os outros pacientes?

O resultado se ressente da falta de humanidade dos personagens, de interesse pelos limites éticos e morais do procedimento, e pelas contradições evidentes da coabitação, num mesmo corpo, da juventude e da velhice.

O espectador permanece sem respostas. Nem mesmo diálogos são utilizados para sugerir as etapas do processo médico. Em O Lagosta (2015), Yorgos Lanthimos também transformava magicamente seus protagonistas, porém brincava com o absurdo da transformação. Ora, o drama de 2022 se leva muitíssimo a sério. Mesmo assim, não explica como ambos foram selecionados, nem desenvolve o impacto das descobertas para os médicos, enfermeiros, para o hospital. O resto do mundo está ciente do que acontece naquela instituição? O que pensam a respeito? Afinal, tal descoberta poderia alterar por completo a sociedade como a conhecemos.

Palimpsesto elimina quase por completo o mundo ao redor de Tellu e Juhani, substituídos por atores cada vez mais jovens com o passar da trama. Conhecemos pouco das profissões, rotinas e das pessoas deixadas para que começassem a morar no quarto de hospital (por quanto tempo? Indefinidamente? Podem parar o procedimento quando bem entenderem?). Ora, o real conflito do rejuvenescimento se encontraria no contato com os indivíduos “comuns” lá fora. Como seria a experiência de ter um corpo jovem e sedutor, com a vivência (e a pouca memória) de uma pessoa na casa dos 80 anos?

No entanto, o roteiro oferece raras oportunidades para que saiam pelas ruas e simplesmente se confrontem à diferença. Não conhecem novos amores, nem iniciam carreiras promissoras: ele faz um curso, ela vai às festas para beber bastante. É impressionante como a ideia provocadora soa desperdiçada, domesticada. Em pouco tempo, Västinsalo converte a jornada num romance improvável, quando Juhani teme passar os dias sem o colega, por quem desenvolve sentimentos especiais.

A própria denominação de ficção científica se afasta do resultado, que possui interesse nulo no novum, o dispositivo capaz de provocar a nova aparência, e suas eventuais falhas, limites e efeitos colaterais. A facilidade com que eles surgem em corpos mais firmes e juvenis (trocados num simples corte de montagem, quando estão tirando uma fotografia ou escovando os dentes) desperta a impressão de que mudaram, na verdade, num passe de mágica. Dois ou três flashes de uma animação avermelhada, com sequências genéticas, são oferecidas como paliativos à falta de desenvolvimento científico.

Não há esforço, dúvida, hesitação, surpresa diante do desconhecido. A autora aborda um conceito criativo apenas para lhe retirar qualquer aspecto de novidade. No final, teria pouca diferença caso a dupla central fosse formada por dois idosos que se apaixonam no hospital durante o tratamento para uma doença qualquer. A questão de se tornarem irreconhecíveis a si próprios se torna tristemente subaproveitada pelo roteiro.

Em contrapartida, as imagens investem numa infinidade de tiques destinados a representar a “sensibilidade”, a “poesia”. Isso implica numa infinidade de close-ups extremamente próximos dos dois, enquanto a profundidade de campo se limita por completo — ou seja, o fundo da imagem fica totalmente desfocado. Multiplicam-se as câmeras lentas, os borrões, os dedilhados tristes ao piano, os acordes melancólicos ao violão. O cenário do hospital justifica as imagens embranquecidas, capazes de cegar os idosos e o espectador.

Ora, Palimpsesto não se importa nem com o espaço (desconhecemos o hospital, nunca entendemos quando podem dormir em suas casas e frequentar universidades, e quando precisam retornar), nem com o tempo — uma ironia, dado o tema de partida. Em quantos dias (semanas, meses?) Tellu e Juhani sofrem tal mudança? Os dois soam como clientes banais, que pagam por um serviço como quem compraria uma nova aplicação de botox. Decidem sozinhos, e por impulso, até onde vão em suas jornadas rumo à segunda infância. A medicina também é desprezada pelo caminho.

O Curioso Caso de Benjamin Button se torna uma referência clara no horizonte, além de outros dramas a respeito de mudanças de corpos e transformações destinadas a testar sentimentos e conexões. Ora, neste caso, os dois soam como partículas livres, destituídas de objetivos precisos através do procedimento, e fazendo uso limitado da aparência adquirida. No início, nenhum deles aparentava viver mal o envelhecimento, ou ainda possuir doenças específicas. Uma vez transformados, não enriquecem, nem desfrutam dos corpos potentes, sexualizados, admiráveis. Mudam para permanecer iguais.

O encontro de Tellu, com aparência de 30 anos de idade, com a filha na faixa dos 50 anos certamente traz algum desconforto, porém o tema não é trazido à tona durante a conversa. Västinsalo poderia abordar a banalidade da magia, assim como as fantasias em que extraterrestres habitam entre humanos e não provocam surpresa nenhuma (Breve História do Planeta Verde), ou criaturas mágicas surgem na floresta, porém nunca rompem com o real (O Jardim Fantástico). No entanto, a cineasta parece simplesmente não saber o que fazer com sua premissa, nem até onde pretende levá-la.

Surpreende que tal projeto tenha sido trabalhado, desenvolvido e financiado pelo Festival de Veneza, que certamente acompanhou o trabalho criativo durante anos. O resultado se ressente da falta de humanidade dos personagens, do interesse real pelos limites éticos e morais do procedimento, e pelas contradições evidentes da coabitação, num mesmo corpo, da juventude e da velhice. Sobram dois amigos-amantes, que descobrem a vontade imensa de viver juntos — a exemplo de um romance, comédia ou bromance qualquer.

Palimpsesto (2023)
3
Nota 3/10

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