A priori, este projeto finlandês se comunicaria em especial com fãs de ficção científica. A cineasta Hanna Västinsalo imagina um novo procedimento médico capaz de rejuvenescer pessoas idosas, que mantêm o conhecimento e intelecto avançados. Pouco tempo depois de iniciado o tratamento, aparentam ter 60 anos de idade, e depois 50, 40, 30. Ninguém os distinguiria de outros adultos comuns pelas ruas — eles simplesmente voltam no tempo.
No centro da trama estão Tellu e Juhani, escolhidos para testar o processo experimental. Os dois têm pouco mais de 80 anos, e apesar de não se conhecerem, passam a dividir um quarto de hospital durante as intervenções. Ele possui um ar cabisbaixo e entristecido, por ter se afastado da esposa moribunda. Ela faz piadas, brinca com todos, intervém nos dilemas alheios. Ele representa o drama, e ela, a comédia.
Ora, alguns detalhes começam a incomodar no andamento de uma premissa tão criativa. Nunca acompanhamos em imagens a prática inovadora capaz de transformar por completo os protagonistas. Eles retornam ao quarto cada vez mais novos, e comemoram a mudança. Mas como isso ocorre? Em que consiste o tratamento? Possui um componente cirúrgico, ou apenas medicamentoso? Quem o descobriu? Possui efeitos colaterais? Surte efeitos imediatos? Como se sentem os outros pacientes?
O resultado se ressente da falta de humanidade dos personagens, de interesse pelos limites éticos e morais do procedimento, e pelas contradições evidentes da coabitação, num mesmo corpo, da juventude e da velhice.
O espectador permanece sem respostas. Nem mesmo diálogos são utilizados para sugerir as etapas do processo médico. Em O Lagosta (2015), Yorgos Lanthimos também transformava magicamente seus protagonistas, porém brincava com o absurdo da transformação. Ora, o drama de 2022 se leva muitíssimo a sério. Mesmo assim, não explica como ambos foram selecionados, nem desenvolve o impacto das descobertas para os médicos, enfermeiros, para o hospital. O resto do mundo está ciente do que acontece naquela instituição? O que pensam a respeito? Afinal, tal descoberta poderia alterar por completo a sociedade como a conhecemos.
Palimpsesto elimina quase por completo o mundo ao redor de Tellu e Juhani, substituídos por atores cada vez mais jovens com o passar da trama. Conhecemos pouco das profissões, rotinas e das pessoas deixadas para que começassem a morar no quarto de hospital (por quanto tempo? Indefinidamente? Podem parar o procedimento quando bem entenderem?). Ora, o real conflito do rejuvenescimento se encontraria no contato com os indivíduos “comuns” lá fora. Como seria a experiência de ter um corpo jovem e sedutor, com a vivência (e a pouca memória) de uma pessoa na casa dos 80 anos?
No entanto, o roteiro oferece raras oportunidades para que saiam pelas ruas e simplesmente se confrontem à diferença. Não conhecem novos amores, nem iniciam carreiras promissoras: ele faz um curso, ela vai às festas para beber bastante. É impressionante como a ideia provocadora soa desperdiçada, domesticada. Em pouco tempo, Västinsalo converte a jornada num romance improvável, quando Juhani teme passar os dias sem o colega, por quem desenvolve sentimentos especiais.
A própria denominação de ficção científica se afasta do resultado, que possui interesse nulo no novum, o dispositivo capaz de provocar a nova aparência, e suas eventuais falhas, limites e efeitos colaterais. A facilidade com que eles surgem em corpos mais firmes e juvenis (trocados num simples corte de montagem, quando estão tirando uma fotografia ou escovando os dentes) desperta a impressão de que mudaram, na verdade, num passe de mágica. Dois ou três flashes de uma animação avermelhada, com sequências genéticas, são oferecidas como paliativos à falta de desenvolvimento científico.
Não há esforço, dúvida, hesitação, surpresa diante do desconhecido. A autora aborda um conceito criativo apenas para lhe retirar qualquer aspecto de novidade. No final, teria pouca diferença caso a dupla central fosse formada por dois idosos que se apaixonam no hospital durante o tratamento para uma doença qualquer. A questão de se tornarem irreconhecíveis a si próprios se torna tristemente subaproveitada pelo roteiro.
Em contrapartida, as imagens investem numa infinidade de tiques destinados a representar a “sensibilidade”, a “poesia”. Isso implica numa infinidade de close-ups extremamente próximos dos dois, enquanto a profundidade de campo se limita por completo — ou seja, o fundo da imagem fica totalmente desfocado. Multiplicam-se as câmeras lentas, os borrões, os dedilhados tristes ao piano, os acordes melancólicos ao violão. O cenário do hospital justifica as imagens embranquecidas, capazes de cegar os idosos e o espectador.
Ora, Palimpsesto não se importa nem com o espaço (desconhecemos o hospital, nunca entendemos quando podem dormir em suas casas e frequentar universidades, e quando precisam retornar), nem com o tempo — uma ironia, dado o tema de partida. Em quantos dias (semanas, meses?) Tellu e Juhani sofrem tal mudança? Os dois soam como clientes banais, que pagam por um serviço como quem compraria uma nova aplicação de botox. Decidem sozinhos, e por impulso, até onde vão em suas jornadas rumo à segunda infância. A medicina também é desprezada pelo caminho.
O Curioso Caso de Benjamin Button se torna uma referência clara no horizonte, além de outros dramas a respeito de mudanças de corpos e transformações destinadas a testar sentimentos e conexões. Ora, neste caso, os dois soam como partículas livres, destituídas de objetivos precisos através do procedimento, e fazendo uso limitado da aparência adquirida. No início, nenhum deles aparentava viver mal o envelhecimento, ou ainda possuir doenças específicas. Uma vez transformados, não enriquecem, nem desfrutam dos corpos potentes, sexualizados, admiráveis. Mudam para permanecer iguais.
O encontro de Tellu, com aparência de 30 anos de idade, com a filha na faixa dos 50 anos certamente traz algum desconforto, porém o tema não é trazido à tona durante a conversa. Västinsalo poderia abordar a banalidade da magia, assim como as fantasias em que extraterrestres habitam entre humanos e não provocam surpresa nenhuma (Breve História do Planeta Verde), ou criaturas mágicas surgem na floresta, porém nunca rompem com o real (O Jardim Fantástico). No entanto, a cineasta parece simplesmente não saber o que fazer com sua premissa, nem até onde pretende levá-la.
Surpreende que tal projeto tenha sido trabalhado, desenvolvido e financiado pelo Festival de Veneza, que certamente acompanhou o trabalho criativo durante anos. O resultado se ressente da falta de humanidade dos personagens, do interesse real pelos limites éticos e morais do procedimento, e pelas contradições evidentes da coabitação, num mesmo corpo, da juventude e da velhice. Sobram dois amigos-amantes, que descobrem a vontade imensa de viver juntos — a exemplo de um romance, comédia ou bromance qualquer.