Diante da plateia da Mostra de Cinema de Tiradentes, o diretor Bruno Safadi explicou ter filmado inicialmente, junto a Ricardo Pretti, um plano-sequência de 20 minutos, cobrindo os 7 km de extensão do Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Ambos enxergavam potência nestas imagens, mas não sabiam ao certo como utilizá-las num projeto maior. Passaram três anos revendo o registro, até decidirem colocá-lo em diálogo com a criadora deste espaço, Lota Macedo Soares, em sua árdua luta para concluir o projeto. O Aterro, de certo modo, contaria a si próprio.
Assim, nasce a comunicação entre este parque, enquanto conceito político e arquitetônico, e sua materialização atual. Para Lota busca fazer diversas aproximações férteis e provocadoras, em termos de linguagem: ele une o som evocando o passado (a leitura de cartas de Lota, na voz de Leandra Leal, ao governador da Guanabara) às imagens do presente; a impressão de tempo real e contínuo, típico do plano-sequência, aos saltos temporais das cartas escritas ao longo de diversos meses; e a concretude dos planos de construção ao aspecto etéreo, hipnótico, da paisagem imperturbável do Aterro.
Trata-se de uma premissa fascinante. Os cineastas fogem ao retrato turístico da paisagem, preferindo uma captação noturna, do início ao fim. Nestes fragmentos, mal se distinguem os elementos em cena — o registro inicial, que motivou a dupla, é tão escuro que se assemelha a um borrão preto que poderia ter sido captado na orla de qualquer cidade. É interessante que o olhar de ambos para este espaço resulte numa apreensão onde o parque mal se perceba no escuro.
A perspicácia de Lota Macedo Soares se desenvolve de maneira bastante satisfatória neste projeto. É uma pena que as imagens não a acompanhem.
Além disso, são curiosos os longas-metragens que dispensam o som direto, por representarem um desafio de construção cinematográfica. A banda sonora se sustentaria apenas com narrações esporádicas de cartas, em off? Qual seria o papel de uma eventual trilha sonora? A ausência quase total de rostos humanos aprofunda a aridez desta comunicação — como o espectador poderia se projetar, identificar ou mergulhar na proposta, a partir de 85 minutos de paisagens vazias, escuras, silenciosas e imperturbáveis? Safadi e Pretti oferecem sucessivos desafios a si próprios. De certo modo, estes impasses constituem o verdadeiro objeto de estudo de ambos.
É possível passar os dez primeiros minutos da sessão decifrando o ritmo, o estilo, os propósitos dos autores. Existe um caráter misterioso na imagem escurecida, como se estivesse nos escondendo algo a ser revelado adiante (quando chegasse a luz do dia, ou um trecho mais claro do Aterro, por exemplo). A leitura noturna das cartas torna as reflexões de Lota crepusculares, como se a mulher passasse a madrugada em claro, olhando através da janela, preocupada com a construção interminável. A movimentação constante da câmera, em mesmo sentido e velocidade, desperta certa impressão de hipnose.
Aí começam os problemas da obra, enquanto experiência junto ao espectador. Estes dez minutos iniciais serão idênticos aos 75 próximos. Aquilo que se enxerga no início se repete, se estica, até preencher a duração total do longa-metragem. Sim, as cartas evoluem, e percebemos a modificação do estado de espírito de Lota, entre a animação inicial e a irritação com o amigo-inimigo representado pelo governador. As imagens, em contrapartida, não acompanham este desenvolvimento narrativo. Os criadores estimam que as mesmas paisagens servem para Lota feliz, Lota preocupada, Lota ameaçadora. Os fragmentos iniciais poderiam trocar de ordem com os seguintes, sem qualquer prejuízo ao resultado.
Logo, os planos-sequência se descolam cada vez mais do conteúdo e da paisagem sonora, até se converterem em meras imagens de fundo, em papéis de parede. Esvaziam-se, perdem importância a capacidade de captar os olhos do espectador, propondo algo diferente. Ocasionalmente, uma tela preta interrompe o plano-sequência, enquanto o som oferece pequenos trechos de uma canção: “Adeus, Flamengo…”. (Mesmo nestas horas, o som precisa salvar a imagem). A captação visual retorna de onde parou, como se esta interrupção constituísse mero ornamento para chacoalhar a monótona fluidez das imagens. Não funciona: até mesmo os blacks musicais se repetem, perdendo o efeito de surpresa ou ação.
Logo, Para Lota não desenvolve a sua premissa estética. Apoia-se num ponto de partida de forte potencial, apenas para oferecer 85 minutos de ponto de partida ao espectador. Ora, como as imagens noturnas se atritariam com o mesmo cenário durante o dia? Em versões com pessoas e sem pessoas? Imagens do passado contra imagens do presente? O que aconteceria caso a velocidade do deslocamento se alterasse, ou caso começássemos a enxergar o travelling em direção oposta — da esquerda para a direita? Caso a imagem em movimento se encontrasse com a fotografia still, ou caso diferentes trilhas sonoras se sobrepusessem ao mesmo registro inicial?
Haveria uma infinidade de maneiras de aprofundar o conceito, e testar o pressuposto dos autores. Ao se aterem a um cardápio visual tão modesto, eles tornam a experiência modorrenta, repetitiva, cansativa. Admiramos imagens que parecem não nos admirar mais. Continuamos assistindo ao filme, apesar da impressão de que o filme já acabou. Muitas vezes, a sugestão de que um longa-metragem “deveria ser um curta” constitui mero deboche dos críticos de cinema, sugerindo que nada se salva no projeto. Ora, Para Lota seria um excelente curta-metragem, de fato — não porque as imagens sejam descartáveis, mas porque o conceito estético dos autores se adequava perfeitamente ao propósito e às especificidades do curta.
Resta um belíssimo trabalho de voz de Leandra Leal, durante a vasta maioria do projeto, e de Mariana Ximenes, na conclusão. Ambas se apropriam do texto com vigor, imprimindo nuances, sublinhando a empolgação ou irritação, e injetando vida no transe imagético. É igualmente valioso perceber a inteligência política de Lota Macedo Soares, utilizando sua amizade e sua excelente retórica para convencer o governador de suas intenções. A perspicácia da mulher se desenvolve de maneira bastante satisfatória neste projeto. É uma pena que as imagens não a acompanhem.