Paradise: Uma Nova Vida (2019) revela muito cedo as suas cartas no que diz respeito ao humor. A cena inicial combina o som de um tiro com a trilha sonora alegre, de fanfarra, convidando o espectador a enxergar o ocorrido de maneira divertida, leve e despreocupada. Na cena seguinte, um vendedor de raspadinhas se encontra sob a nevasca, numa estação de esqui, amargando a falta de clientes.
Há um aspecto clown e tragicômico em Calogero (Vincenzo Nemolato), sujeito que pretende “fazer a coisa certa”. Após testemunhar um crime envolvendo a máfia siciliana, decide denunciar os criminosos e enfrentar a exclusão social graças a um programa de proteção à testemunha. A esposa, nas últimas semanas de gravidez, implora para que ele esqueça a situação e apenas permaneça em família. O jovem, no entanto, segue sua moral rígida, sendo enviado a um vilarejo distante, numa pousada grande e abandonada sob o gelo, nos moldes de O Iluminado.
O diretor e roteirista Davide Del Degan aprecia no protagonista, e no matador (Giovanni Calcagno) radicado no mesmo endereço, o símbolo de fracasso. Trata-se de dois homens sensíveis, antissociais, punidos pela ausência de malícia ou traquejo social. Para o roteiro, nada é mais ridículo do que um assassino vegetariano, gay, que faz as cutículas e leva flores ao colega de hotel durante um encontro. As piadas não visam as normas de conduta impostas aos machos, mas sim os indivíduos que ousam fugir a estas regras.
Isso leva à questão fundamental acerca do discurso. Paradise: Uma Nova Vida ridiculariza os personagens ou o sistema em que se inserem? Ele nos convida a rir da máfia e da falência da proteção às testemunhas, ou da inabilidade dos dois homens em lidarem com a reclusão forçada? Infelizmente, a resposta se encontra na segunda alternativa. O cineasta se delicia em imaginar o quão patéticos podem ser os dois adultos, apesar de bem-intencionados.
A exemplo de seus dois heróis, o filme busca no escapismo cômico uma maneira de fugir à complexidade dos temas subjacentes: a paternidade, a máfia, a homossexualidade, a exclusão social.
Esse deboche em relação às minorias se traduz num teor próximo da homofobia. O roteiro ri do instante em que o sujeito gay tenta beijar o colega; e se delicia em incontáveis cenas de dança folclórica, quando os participantes homens empinam o corpo e batem nas bundas uns dos outros. Debocha-se da tentativa de Calogero de pintar o cabelo de loiro para se disfarçar, e da incapacidade em tirar proveito de uma situação romântica envolvendo uma mulher sedutora. O desprezo se direciona aos homens incapazes de “agir como homens”.
Enquanto isso, a trama falha na tentativa de despertar tensão ou comicidade inerentes à situação. Seria evidente que um sujeito disfarçado, e potencialmente ameaçado, pudesse ficar paranoico, desconfiado. Ora, o herói age como um cão carente, de olhos arregalados e comportamento emasculado. Em paralelo, a farsa das identidades trocadas proporcionaria incontáveis possibilidades de humor. Entretanto, a jornada prefere inserir um mapa em quebra-cabeça cujas peças caem diariamente, ou a placa de “paraíso” atribuída ao local inóspito. São recursos simples, e modestos, diante do potencial anunciado.
No elenco, os dois intérpretes se equilibram através de registros opostos. Nemolato sublinha a voz dócil, abre bem os olhos, torna o corpo mais franzino em busca da ridicularização da delicadeza. Já Calcagno sustenta a aparência de homem grande e soturno, ainda que de olhar bondoso. Os instantes de carinho decorrentes deste último soam mais verossímeis e complexos do que aqueles partindo do protagonista. Caso a direção de fotografia não escurecesse tanto as noites, nem tivesse medo de aproximar o enquadramento do beijo entre dois homens, traria dois instantes comoventes de afeto.
Ora, o texto prioriza a criação de conflitos jamais desenvolvidos. Calogero nunca aparenta estar sendo perseguido de fato; as saudades em relação à filha pequena aparecem em instantes convenientes à trama; a delação do matador que trocou de lado desaparece do percurso. O próprio programa de proteção soa inverossímil, mesmo pela perspectiva da comédia leve e fabular. O cineasta prefere ver os homens entediados numa colônia decadente a ocupá-los com os problemas que possuem de fato. Por isso, giram em falso na trama dedicada a ambos. Ironicamente, todos soam como coadjuvantes no filme.
O resultado funciona enquanto cinema agradável e despretensioso. A exemplo de seus dois heróis, busca no escapismo cômico uma maneira de fugir à complexidade dos temas subjacentes: a paternidade, a máfia, a homossexualidade, a exclusão social. Por que se divertir com os absurdos e derivas destas questões, quando se pode extrair piadas de um jantar composto inteiramente de maçãs, ou de um padre que dança enquanto prepara a missa? Os criadores certamente possuem um estranho senso de prioridades.
A situação se complica no desfecho. Calogero, este homem fraco e tolerante, que aceita ir para onde mandam, limitando-se aos desejos de terceiros, decide enfim se empoderar e assumir o papel de pai de família. Ora, para o filme, o “final feliz” consiste num ato violento e irresponsável, apresentado enquanto mero motor de comicidade. A conclusão do herói, e do filme inteiro, sela a impressão de um projeto deslocado em termos de foco, discurso e meios.