Paris, 13º Distrito (2021)

Os amores da multidão solitária

título original (ano)
Les Olympiades, Paris 13e (2021)
país
França
gênero
Drama
duração
105 minutos
direção
Jacques Audiard
Elenco
Lucie Zhang, Noémie Merlant, Makita Samba, Jehnny Beth, Camille Léon-Fucien, Oceane Cairaty, Anaïde Rozam, Pol White, Geneviève Doang
visto em
Cinemas

Em termos narrativos, Paris, 13º Distrito (2021) representa um filme explicitamente contemporâneo, do tipo que não seria possível poucos anos atrás. O diretor Jacques Audiard explora os relacionamentos de uma juventude presa às redes sociais, solitária em meio à multidão, afetada pela crise financeira apesar da alta qualificação acadêmica e profissional. Estes indivíduos amam, esquecem o amante no dia seguinte, e voltam a reencontrá-lo com a fluidez de quem escolhe um novo par de calças no armário. Nenhuma configuração é tão sólida que não possa se alterar por completo na cena seguinte.

Assim, Camille Germain (Makita Samba) é um professor universitário arrogante e respeitado, porém num corte da montagem, passa a dividir um pequeno apartamento com a primeira pessoa encontrada, e na elipse seguinte, surge trabalhando no setor imobiliário. Nora Ligier (Noémie Merlant) sofre as consequências de ser confundida com uma estrela do pornô — sua vida parece arruinada pelo bullying e o machismo dos colegas. Simples salto temporal, e ela estará distante do meio universitário. O conceito de “modernidade líquida” de Bauman se explicaria muito bem por esta experiência de dispersão e reconfiguração quase aleatória dos corpos e dos afetos.

O discurso se expande ao sexo e à sexualidade. Camille logo se relaciona com a colega de quarto Émilie (Lucie Zhang), antes de determinar, de modo abrupto, que o sexo se interrompa. Ele passa então a trazer garotas para o apartamento. O chefe da imobiliária se relaciona com Nora, que recusa o flerte ao princípio, antes de tomar as rédeas da sedução e o controle do relacionamento. Audiard filma corpos sem idealização, nem efeitos de luz, trilha ou montagem destinados a torná-los mais sedutores aos olhos do espectador. Eles exploram seus corpos como quem almoça, dorme, estuda. O sexo se torna uma parte banal da vida cotidiana. 

Por este aspecto, em termos estéticos, o longa-metragem remete às experiências da Nouvelle Vague, que consagraram certa ideia do cinema francês no imaginário coletivo. Assim como nas obras iniciais de Jean-Luc Godard, François Truffaut e Éric Rohmer, os protagonistas deste drama passam a maior parte do tempo pelas ruas da cidade. Eles são seguidos por uma câmera fluida na mão, tremendo de maneira quase imperceptível, e filmados com luz natural, avessa a recortes preciosistas de textura ou profundidade de campo. Trilhas sonoras destinadas a manipular sentimentos são retiradas de cena.

Em outras palavras, atinge-se uma forma de cinema crua, direta, próxima da aparência de realidade — apesar do preto e branco que estiliza a percepção do real. A narrativa desperta a impressão de seguir o trio central sem objetivo preciso, nem uma lição a aportar no final. Segue-se o dia após dia, como se houvesse abertura à espontaneidade, e a própria câmera ignorasse os próximos passos dos atores-personagens. Obviamente, os saltos temporais denotam o estrito controle da trama, porém cada cena, em seu ritmo interno, soa acontecer em tempo real, abrindo-se ao acaso, à contemplação, aos tempos mortos.

O autor experimenta uma forma de cinema praticamente oposta àquela que o consagrou nos festivais internacionais.

Ao invés de filmar as grandes transformações na vida dos heróis, Audiard privilegia os trechos intermediários. Nada da decisão de Nora em abandonar a faculdade, da escolha controversa de Émilie em parar de visitar a avó no hospital, ou de Camille em ingressar no ramo imobiliário para completar a renda. Quando percebemos, estas transformações já ocorreram, e caberá ao espectador lidar com a surpresa ou frustração das guinadas abruptas desprovidas de preparação. Presenciamos mais cenas com estes jovens adultos tomando café, correndo para chegar ao trabalho e atendendo o telefone do que sofrendo profundas mudanças de vida.

A proximidade com os preceitos da Nouvelle Vague decorre igualmente da montagem nada discreta, com aparência de leveza, contrária aos dramas solenes do “cinema de papai” que os críticos-autores da Cahiers du Cinéma tanto detestavam. Por que o cinema não pode ser leve em construção, aparência, em imersão na vida diária de gente comum? É claro que a aparência despojada nunca significou um cinema inconsequente: havia um controle estético precioso, além de um posicionamento político evidente, por trás daquelas obras; assim como existem, em igual medida, neste filme do século XXI.

Audiard jamais foi conhecido por obras etéreas, de contemplação. Pelo contrário, O Profeta (2009), Ferrugem e Osso (2012) e Dheepan: O Refúgio (2015) carregam temas densos, em abordagens estética e narrativamente sombrias, de rígido controle de mise en scène. Por isso, encontrá-lo experimentando um registro de tamanha despretensão soa como um exercício muito bem-vindo na carreira (sobretudo após o fracasso comercial e de crítica de Os Irmãos Sisters, 2018). O autor experimenta uma forma de cinema praticamente oposta àquela que o consagrou nos festivais internacionais, mostrando-se igualmente desenvolto com narrativas cotidianas do que nos universos da máfia, dos relacionamentos tóxicos e da marginalidade étnica e social das periferias francesas.

A direção de atores se mostra equilibrada e precisa: Makita Samba, Noémie Merlant e Lucie Zhang conversam como colegas num bar, em ritmo ora truncado, ora acelerado; errando as palavras e se repetindo. Os planos de conjunto minimizam sentimentos muito demarcados nos rostos enquanto privilegiam as movimentações da cozinha ao quarto; da avenida à universidade. O trio demonstra uma entrega impressionante ao registro minimalista, para o qual a qualidade da atuação decorre da impressão de não atuar. Este registro é complexo, porém comum na escola naturalista de dramaturgia francesa, para quem os ditames do method acting anglo-saxão pareceriam ridículos. 

Para os protagonistas, um silêncio será apenas uma pausa, e a hesitação, nada mais do que um tique, ao invés de um momento profundo onde refletem sobre algum trauma de infância, por exemplo. As atuações resgatam a ideia do corpo presente, desconstruído de exemplaridade ou finalidade precisa. Trata-se de um gesto de entrega que resultaria em descaso ou amadorismo nas mãos de diretores menos experientes, porém Audiard calibra seu elenco em tom coeso e equilibrado — ninguém se destaca em relação aos colegas, positiva ou negativamente.

É certo que algumas passagens soam estranhas, pouco justificáveis, aproximando a trama do realismo fantástico rumo ao final — vide a queda no parque e o beijo em contraluz. A proposta de cinema direto abres as portas à percepção romântica, excessiva, contradizendo a si própria. O diretor encontra no artifício a força necessária para concluir um projeto que, até então, se sustentava no decalque mínimo do real. Paris, 13º Distrito combina estranhezas estéticas a naturalismos narrativos — ou seria o contrário? 

De qualquer modo, com suas arestas, revela-se uma obra ousada para um autor consagrado. Ele oferece a perspectiva de uma Paris marginalizada e multiétnica, distante dos fetiches que costumam acompanhar a representação de pessoas negras e asiáticas nas periferias, evitando converter estes traços em motor de conflito. Talvez o principal posicionamento político se encontre na imagem de um intelectual negro de corpo nada fetichizado; na figura de uma profissional asiática sem apego específico à cultura chinesa. Há potência na escolha deliberada pela simplicidade diante de temas tão propensos à problematização. 

Paris, 13º Distrito (2021)
8
Nota 8/10

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