A sinopse e o material publicitário provavelmente venderão este filme como uma bela história de amor envolvendo dois rapazes e uma garota — sobretudo por serem atores do porte de Franz Rogowski, Ben Whishaw e Adèle Exarchopoulous. Eles acertariam na descrição do elenco, de fato, excelente. No entanto, há controvérsias quanto ao caráter romântico desta obra muito mais amarga do que aparenta à primeira vista. Para quem espera algum tipo de sonho conciliatório (do tipo “Um dia você encontrará a pessoa ideal”), a resposta do longa-metragem será menos otimista.
Isso se deve sobretudo à figura de Tomas (Franz Rogowski), o verdadeiro protagonista deste trio. Na cena inicial, este diretor de cinema trata de maneira grosseira um figurante antes de concluir as filmagens do dia. Depois, se mostra arrogante com o marido Martin (Ben Whishaw). A seguir, o roteiro se limita a um exercício de dominação do sujeito que se ampara de duas figuras mais frágeis e introspectivas do que ele, passando então a utilizar este afeto e descartá-lo quando o desejar. Você não quer estar comigo esta noite? Sem problemas, vou à casa dela. A garota me dispensou? Tudo bem, bato à porta do marido.
A dificuldade de enxergar um triângulo equilibrado reside nesta estrutura que opõe a atividade de Tomas à passividade de Martin e Agathe. Não se trata de um relacionamento de igual para igual, onde as partes possam se expressar da mesma maneira. Em outras palavras, o rapaz controla os afetos, os rumos da narrativa, e encanta o diretor Ira Sachs, que lhe fornece mais tempo de tela, e lhe permite monopolizar o ponto de vista (vide a conclusão). O projeto se encanta com o estilo obsessivo e explosivo que Rogowski consegue imprimir tão bem, acreditando que o espectador também o desculpará por sua inconsequência.
Poderia ser descrito como queer white people problems. Os três se importam unicamente em amar e ser amados. Ele vai viajar comigo? Ela vai me deixar? Ele quer ter um filho?
Ora, Passages oferece através da figura deste homem um dos sujeitos mais desagradáveis do cinema queer recente (ironicamente, o próprio Rogowski havia estrelado um romance queer belíssimo em Great Freedom). Alguns protagonistas abusivos são enaltecidos pelo cinema contemporâneo, que enxerga, nestas construções, um excelente material dramático. Cada atitude reprovável do homem será perdoada pelo mundo, para que ele continue se excedendo, errando, e gerando dramaticidade. O longa-metragem se encanta com o comportamento perverso, dando menos atenção à dor de Martin e Agathe (a única cena liderada apenas pelos dois, no café, soa como um alívio neste sentido).
Em consequência, a narrativa carrega um teor violento por trás da aparência de encantadora história de amor. Esta seria tanto uma fábula de reencontros amorosos e recombinações possíveis (o trisal, os casais livres e abertos, a bissexualidade enquanto essência do indivíduo) quanto um conto sobre relacionamentos tóxicos, movido por um sujeito abusivo e controlador. Sachs nunca demonstrou prazer em explorar lados realmente obscuros de seus personagens, razão pela qual o caráter destrutivo de Tomas se insere numa incômoda aura de normalidade, de pessoa “que ama demais”, que se excede “mas, no fundo, tem boas intenções”. A normalização destas atitudes resulta num dos elementos mais problemáticos do drama.
Pelo menos, o elenco entrega o que se esperaria deste trio de atores tão distintos. Rogowski comprova a impressionante versatilidade; Adèle Exarchopoulos transmite sua naturalidade com diálogos e a falta de vaidade; e Ben Whishaw fornece a timidez e introspecção que o cinema adora extrair dele. Os três ocupam tipos favoráveis às suas forças como atores — o cineasta jamais pede que se excedam em desafios gigantescos. Sachs ainda filma uma bela cena de sexo entre dois homens, como raramente se descobre numa produção LGBQTIA+ voltada ao público amplo. A cadência e potência de uma penetração deixam de ser algo a esconder, para se tornarem parte do sexo comum.
No entanto, o espectador precisa arcar com algo que poderia ser descrito como queer white people problems, ou seja, problemas de gente branca em versão LGBTQIA+. Aqui, os três se importam unicamente em amar e ser amados. Saem da casa de um para a casa do outro, de uma briga na cozinha para a briga seguinte no bar. Ele vai viajar comigo? Ela vai me deixar? Ele quer ter um filho? Ninguém possui problemas no trabalho, na família, nem dificuldades financeiras, problemas de saúde ou qualquer outro conflito fora da bolha amorosa. Vive-se de afetos, de expectativas e desejos. As breves cenas no trabalho de cada um servem apenas a citar suas profissões, com as quais demonstram pouco engajamento.
Tamanho desapego com o resto da sociedade, num umbiguismo profundo, se deve à situação financeira confortável desta classe média-alta artista. Os personagens vivem em lofts confortáveis, com suas vitrolas, belos quadros na parede, gigantescas estantes de livros. Quando estão entediados, planejam uma viagem a Veneza. Ninguém possui posicionamentos políticos, sociais, éticos, morais. Os personagens constituem satélites orbitando ao redor uns dos outros. Este desinteresse pela comunidade em que se inserem cria um aspecto ainda mais desagradável para os três personagens.
O teor agridoce se completa com alguns diálogos impulsivos à beira do patético — de maneira intencional, espera-se. “Eu adoro ver você crescer e viver a sua vida”, dispara Tomas ao marido, durante a ruptura, antes de considerá-lo “como um irmão”. Rogowski fica encarregado das falas mais improváveis e absurdas, e se sai melhor quando a direção permite a comédia do fracasso (a cena na escola). No entanto, nas negociações “sérias” a respeito de paternidade, o drama apenas parece deslocado de um mundo verossímil. A possibilidade de fazer o que se quiser, quando quiser, soa como o cúmulo da idealização burguesa dos sentimentos.
O final sem final — uma suspensão da trama, ao invés de uma conclusão aberta, propriamente dita — apenas confirma a impressão de que a narrativa não sabe como se desenvolver sem as atitudes questionáveis de Tomas. Impedido de abusar do parceiro e da parceira, a trama se encerra por W.O. Por fim, Passages demonstra bastante criatividade, além de abertura para reconfigurar as noções de casal contemporâneo. No entanto, revela-se menos aberto à responsabilidade afetiva e ao empoderamento das partes prejudicadas nestas experiências traumáticas. Rei de seu próprio mundo, Tomas conquistou, ao longo de 90 minutos, (quase) tudo o que queria.