A narrativa se inicia quando Suellen já se encontra no limite de suas forças. Ela não sabe mais o que fazer com o filho, que gosta de colocar maquiagem e fazer vídeos para a Internet, imitando divas do jazz com trejeitos femininos. Esta funcionária de um pedágio em Cubatão já tentou de tudo: brigou, aconselhou, proibiu, acendeu uma “vela da virilidade” à beira da estrada, e trouxe uma nova referência masculina para casa (o namorado), em substituição ao pai ausente.
“Falam que você está quase virando um traveco”, ela reclama, preocupada com a opinião dos colegas no local de trabalho. O menino bufa, dá de ombros, e segue fazendo o que bem entende. É curiosa a simetria formada entre Pedágio e Carvão, dois filmes da diretora Carolina Markowicz, estrelados por Maeve Jinkings, e voltados às dificuldades tragicômicas da classe média-baixa.
Diante dos problemas financeiros na família, ambas as heroínas recorrem à ilegalidade de maneira desesperada, e próxima da fantasia. Irene aceitava entregar o pai morto às chamas, poupando o lar dos gastos exorbitantes com o idoso doente. Suellen envia o filho aos cuidados de um pastor estrangeiro (e às chamas, simbolicamente) para que também seja consertada a estrutura familiar. De qualquer maneira, os reparos precisam acontecer fora do lar, e longe dos olhares. Os problemas se resolvem na base da interferência direta ao corpo, controlando as pulsões de vida e de morte.
A direção toma precauções para garantir que o humor não se transforme em deboche, nem caricatura. No entanto, o filme minimiza demais a violência da cura gay.
O cenário interiorano da fábula anterior se contrasta com o contexto industrial e urbano da obra de 2023. Mesmo assim, os sonhos de consumo permanecem: a motocicleta cara de antes; o relógio de luxo desta vez. Existir socialmente consiste em ter objetos, aparecer nas redes sociais, ser visto pelos demais enquanto frequentável. Os olhares alheios inquietavam Irene, como perturbam Suellen, duas mulheres oprimidas pela sociedade, porém sem sabê-lo. Acreditam que as coisas são assim mesmo, naturais. Certamente não serão os homens inúteis (Rômulo Braga antes, Thomás Aquino agora) que lhe ajudarão numa eventual tomada de consciência.
A presença do filho gay, neste contexto, proporciona um respiro à trama. Antônio (Kauan Alvarenga), conhecido como Tiquinho, inquieta-se pouco com as más línguas na escola, ou com as pressões da mãe. Vende seus produtos de beleza através da Internet, e continua performando, mesmo que a plateia esteja ausente. Talvez o garoto apresente um ar blasé e desinteressado demais, no entanto, a caracterização se justifica pela criação de filho único, infantilizado, ainda imaturo. Se a mãe valoriza muito o olhar externo, o garoto opera na negação desta interferência.
Até a fala mal articulada e projetada do ator — em comparação com os colegas de elenco, muito experientes — poderia ser compreendida por este prisma. Outro fator que facilita a adesão a certas liberdades criativas consiste no humor. A cineasta decide retratar um mundo absurdo por um viés igualmente absurdo. Logo, o menino aprende a cantar “Ai, se eu te pego” no coral da escola; a assessora do bispo avisa sobre a tomada de almas por usucapião; a melhor amiga alerta a respeito do “Novembro Arco-Íris”, quando se luta contra a “pederastia” assim como se combate o câncer de mama nos outros meses “coloridos” do calendário.
A direção toma algumas precauções fundamentais para garantir que o humor não se transforme em deboche, nem caricatura. É evidente o carinho da mãe pelo filho, e deste por ela. Suellen jamais se transforma na evangélica fanática — sua relação com os dogmas conservadores provém de um senso comum, uma obrigação da comunidade, ao invés de uma convicção pessoal firme. O menino tampouco se limita à sexualidade: as roupas cor-de-rosa se alternam com uniformes comuns, a fala afeminada cede espaço à conversa agressiva e de tom masculino; o despojamento excessivo não impede acessos de fúria. Há uma variação notável na composição do garoto.
Em paralelo, a produção demonstra um cuidado excepcional com detalhes destinados a tornar estas rotinas palpáveis. O trabalho do menino numa lanchonete; os objetos dispersos no quarto sem pintura finalizada; as refeições simples de mãe e filho; as portas sanfonadas de plástico; as caixinhas guardadas pelos cantos transparecem o olhar atento da direção de arte, e também da fotografia naturalista. As cores e luzes evitam ressaltar a insensatez dos códigos sociais, tratando as interações “fora da norma” enquanto trocas comuns, o que ressalta seu estranhamento e comicidade.
No entanto, outros elementos soam desconexos, seja por falta ou excesso. Assim como em Carvão, onde a queima soava como um pano de fundo jamais explorado, o trabalho no pedágio adquire um ar fantasmagórico. Praticamente inexistem outros trabalhadores para além da protagonista, da amiga Telma (Aline Marta Maia) e do chefe, que faz aparições esporádicas. As duas se sentam em cafeterias vazias, conversam durante pausas vazias, atravessam corredores vazios, depois de percorrerem avenidas vazias. Onde estão as pessoas?
A imersão desta mãe desamparada no mundo do crime ocorre de maneira brusca, facilitada pelos saltos da montagem, representando uma oferta quase mágica de financiar a “cura gay” do filho. O destino reservado ao pastor também reflete uma conveniência exagerada do roteiro. O próprio procedimento se converte numa brincadeira lúdica, com ares de palestra motivacional: os participantes homossexuais moldam pênis e vaginas em massinha; bebem sucos extraídos “diretamente da genitália” do sexo oposto; assistem a vídeos depreciativos sobre o ânus. Eles escapam quando querem, e interagem sem real vontade, como se participassem de uma oficina voluntária.
Ora, apesar de o humor justificar este retrato kitsch e fantasista (momento em que se filia aos tratamentos alegóricos da sexualidade castrada em Divino Amor e Medusa), Pedágio minimiza demais a violência de tais propostas. Na realidade, os mecanismos de “cura gay” consistem em lavagens cerebrais, de profunda agressão física e psicológica, baseadas na culpa, no ódio a si próprio, na repressão. Resultam, em alguns casos, no suicídio, como ocorreu recentemente a Karol Eller. São muito mais graves e nocivos do que as pequenas gincanas propostas pelo pastor Isac (Isac Graça).
Neste aspecto surgem os principais questionamentos diante da ficção — não pela presença do humor, mas pela hora escolhida para empregá-lo, e na maneira determinada para tal. Os homens patéticos, que talvez recebessem bem tal distanciamento, são tratados com uma seriedade sepulcral — vide Thomás Aquino embrutecido, mais contido do que de costume, ou os chefes do esquema de objetos roubados. Já as apresentações queer de Tiquinho jamais transmitem a liberdade, o prazer, ou então o desconforto face à reação fria da “plateia”.
A cena final resume este mal-estar, parcialmente voluntário, mas talvez um pouco descontrolado. Sem fornecer spoilers, pode-se dizer que a conclusão não esclarece o papel que a homossexualidade assumida terá para o garoto, nem a maneira como a mãe realmente se sente diante de novos fatos. A câmera se afasta de ambos, em distância equivalente, evitando abraçar o olhar de um ou de outro. Perde o menino de vista, e esquece a mãe em trâmites comuns do trabalho. Eles permanecem herméticos, ainda represados em sua raiva, desejo, alívio, afeto. A trajetória de Antônio e Suellen parece começar, de fato, no instante em que suas existências são subitamente interrompidas.