Carvão (2022)

O velho e o traficante

título original (ano)
Carvão (2022)
país
Brasil, Argentina
gênero
Drama, Suspense
duração
107 minutos
direção
Carolina Markowicz
elenco
Maeve Jinkings, Cesar Bordón, Jean Costa, Rômulo Braga, Camila Márdila, Pedro Wagner, Aline Marta
visto em
Festival de Toronto 2022

Era uma vez uma família muito, muito pobre. O pai e a mãe trabalhavam o dia inteiro, mas tinham dificuldade para manter o filho pequeno e o avô, um homem doente. Até que uma bruxa apareceu à família e falou: se você me entregar o vovô e abrigar um homem misterioso no lugar dele, eu te dou mais dinheiro do que você jamais imaginou. Então, Fausto, quer dizer, Irene, aceitou fazer o pacto e acolher o sujeito estranho no quarto do filho. De repente, os familiares equilibravam o medo e a empolgação de viver com um sujeito perigoso, além do dinheiro que finalmente conseguiram.

É possível pensar em Carvão pela perspectiva da fábula sombria — cabendo a cada um determinar a moral estabelecida no final. Outra chave de leitura se encontra na farsa, ou seja, na troca de personagens para criar tensão ou humor (neste caso, os dois). Uma pessoa se passa por outra, e a família precisa esconder quem está realmente dormindo no quarto do avô. Mas o pai também tem seus segredos a esconder. A mãe oculta alguns desejos, revelados pela presença do intruso. Mesmo o pequeno Jean, garoto travesso e amoroso, traz surpresas aos familiares.

A diretora Carolina Markowicz parte de um motor clássico do suspense e também do cinema clássico: a chegada de um intruso que transforma completamente a rotina dos familiares. Podemos pensar em exemplos que vão do italiano Teorema (1968) ao brasileiro recente A Mesma Parte de um Homem (2021). Ao invés de o estrangeiro agir diretamente na vida dos demais, são os outros que não conseguem esconder seus segredos, revelando aspectos que tentavam ocultar até então. A figura estranha, convivendo dia e noite pelos cômodos, serve como um catalisador de conflitos, desejos e pulsões que talvez jamais se concretizassem naturalmente.

Devido ao caráter fabular, os acontecimentos navegam entre uma realidade crua até demais e um teor propício ao delírio. A escolha de uma casa tão modesta para abrigar um homem riquíssimo soa improvável, assim como a maneira determinada pelos familiares para se livrarem do fardo que representa o homem doente. (Mas pensando bem, poderia ser de outra maneira?). O longa-metragem flerta com o horror — o rosto intenso de Maeve Jinkings diante de uma fogueira relembra seu trabalho em Estátua! — e com a comédia, às vezes alegremente assumida como tal — o garoto comprando refrigerante aos amigos, a demora da vizinha em ir embora.

Devido ao caráter fabular, os acontecimentos navegam entre uma realidade crua até demais e um teor propício ao delírio.

Uma das deliciosas ironias deste projeto se encontra na inversão tragicômica de poderes. Subitamente, o homem poderosíssimo, que ainda detém toda a sua fortuna, se vê impedido de utilizá-la, convivendo num casebre modesto, junto das galinhas e dos porcos. Da mesma maneira, a família adquire uma soma de dinheiro que jamais poderia gastar livremente sem despertar suspeitas na cidadezinha. De que adianta ter tamanho poder e recursos financeiros, se não podem ser utilizados? A revolta dos familiares reside na castração de um direito tão desejado de esbanjar, consumir, possuir.

A dificuldade em possuir se converte ao aspecto sexual desta história movida por frustrações. Se o anjo de Teorema fazia sexo com todos os familiares, aqui, reina a impotência: o marido evita as relações sexuais com a esposa — por motivos explicados adiante —, e esta busca outro parceiro para satisfazê-la, sendo recusada diversas vezes. Até o garoto pergunta ao sujeito com quem divide o quarto se o recém-chegado possui desejos pedófilos. No entanto, apenas a morte se concretiza neste percurso, mais de uma vez, o que inclui a poderosa cena final, repleta de significados, e propensa a levantar um bom debate.

O título Carvão faz referência ao trabalho de marido e mulher, mas também à queima, à destruição, algo fundamental na vida desta “família tradicional brasileira”. Para que algo renasça a partir de uma situação desfavorável, de estagnação, é preciso primeiro que as bases se destruam pelo fogo, algo que Bacurau (2019), Fogaréu (2022) e Mato Seco em Chamas (2022) já mostraram muito bem. Nas telas de Toronto, tem se multiplicado as metáforas da água, das ondas do mar (em Nanny, Decision to Leave, The Swimmers), mas para o Brasil, a força se encontra no poder do fogo — o único elemento que de fato consome algo neste percurso.

Markowicz não tem medo de introduzir elementos de estranheza que facilmente seriam eliminados na mesa de montagem de projetos com ânsia mais universalizante. A figura da Miss Lobisomem Joanópolis, as piadas sobre a “fralda raspando o cu” e a piada recorrente da carreira de cocaína em forma de animais sugerem uma aproximação bruta do corpo, uma forma escrachada e sem filtros de lidar com sexualidade e morte. O projeto poder ser lido, também, pela perspectiva da impossibilidade de realizar o luto, processo de impacto profundo na sexualidade.

Em termos de linguagem, a cineasta combina uma abordagem próxima do documental com um cinema farsesco, assumidamente roteirizado. Há falas gaguejadas ou consertadas, um ator mirim incrivelmente desenvolto e interações que parecem decorrentes de improvisos. No entanto, o naturalismo das cores, formas e duração de cenas se confronta com a tensão, a sugestão do horror através do desconhecido: o que ocorre no quarto da avó da vizinha? Atrás da porta do avô? Com o marido, quando vai à cidade? Conforme a narrativa avança, a câmera se aproxima dos rostos, a movimentação fica mais fluida e livre, e o sentimento de claustrofobia se acentua.

O elenco é bem trabalhado para navegar entre um realismo social brutalizante e a perspectiva da representação alegórica. Maeve Jinkings traz banalidade a cenas de humor (o sabor das calcinhas comestíveis) e intensidade para o que poderia ser banal (as indiretas para a vizinha ir embora, a confrontação com o marido diante de um presente caro demais). Rômulo Braga, por sua vez, mantém o tom soturno que lhe é peculiar, porém guardando um caldeirão de desejos por trás da aparência calada. Jean Costa é um prazer de ver em cena, pela capacidade de jogar com um ator do nível elevadíssimo de Cesar Bordón.

Para o público, a tensão pode parecer microscópica, um tanto linear na progressão de tons e atmosferas. Quem espera um chefão do tráfico excessivamente violento, encontrará um homem de ações menos espetaculares. O mesmo vale para o imaginário da família “humilde” e subserviente que aceita acolhê-lo. A ciranda de poderes se mostra mais interessante, assim como as intromissões de sexualidades fluidas; o sotaque forte, ainda que bastante cuidadoso, de Maeve Jinkings; o espelhamento na vizinha (Camila Márdila); a geografia interessante dos espaços, e assim por diante. Há uma riqueza de elementos a absorver e digerir, capazes de deixar o espectador intrigado muito tempo depois da conclusão.

Carvão (2022)
7
Nota 7/10

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