Decision to Leave (2022)

Eu te dedico a morte

título original (ano)
헤어질 결심 (2022)
país
Coreia do Sul
gênero
Suspense, Romance
duração
138 minutos
direção
Park Chan-wook
elenco
Tang Wei, Park Hae-il
visto em
Festival de Toronto 2022

Segundo este filme, existem dois tipos de pessoas: aquelas que gostam de montanha, e aquelas que gostam do mar. Os primeiros são aventureiros, preferem observar o mundo do alto, à distância, sem serem vistos. Os segundos são seguros, sonham menos, porém possuem a habilidade de surpreender, porque nada se espera deles. Em Decision to Leave, esta dicotomia é simbolizada por um interessante papel de parede no apartamento principal, cujo relevo lembra, o mesmo tempo, as ondas do mar e montanhas numa colina.

Outras duplas de opostos, ou pelo menos de diferenças, dominam a narrativa. Existe a cultura coreana, representada pelo detetive Hae-jun (Park Hae-il), e a cultura chinesa, simbolizada por Seo-rae (Tang Wei), mulher acusada do assassinato do marido. Existem aqueles cujo relacionamento se move pelo amor e pela vontade de ter filhos (vide a pobre esposa do herói), e aqueles para quem a motivação seria o mistério da morte. “Você precisa de assassinato e violência para ser feliz”, reclama a esposa negligenciada. 

Justamente, o diretor Park Chan-wook une romanticamente dois indivíduos fascinados pela morte e pela fascinação do assassinato. Uma, na condição de possível realizadora dos atos, e o segundo, a posição de investigador. Eles se completam enquanto opostos, um constituindo a razão de existir do segundo — o que restaria dos policiais sem crimes a investigar? O texto imagina um deslocamento da dinâmica sadomasoquista para o jogo entre a suposta matadora e o sujeito encarregado e prendê-la, ainda que interessado demais nos passos dela para interromper o jogo tão cedo. 

Em termos de estrutura, a jornada se inicia como um suspense policial comum, através da descoberta veloz de um cadáver. A investigação aponta rapidamente à esposa. A situação se complexifica com a chegada da história de amor, que atenua a tensão, até o amor ser perturbado, no terço final, pelo retorno ao thriller. Nas mãos de outro diretor, o resultado seria uma telenovela marcada por mulheres fatais, policiais virtuosos e um laço amoroso impossível. Felizmente, o cineasta sul-coreano sabe tratar deste emaranhado sem levá-lo a sério demais.

O longa-metragem se converte num deleite cinematográfico, superando o magro roteiro em que se baseia.

O primeiro passo de distanciamento provém do humor. Apesar da aparência soturna das imagens e dos acontecimentos, o projeto está repleto de piadas de autoironia, exageros propositais ou tiradas sarcásticas nos diálogos. Assim, o espectador possui a ciência de que as inúmeras reviravoltas e revelações fazem parte de um plano voluntário de manipulação da espectatorialidade. Em outras palavras, somos cúmplices da traquinagem, ao invés de alvos dela. Nunca se pretende efetuar um comentário ácido a respeito do real, apenas um deslocamento da verossimilhança através do realismo fantástico.

Isso explica o segundo passo, proveniente do absurdo. Há uma quantidade expressiva de acontecimentos insanos em Decision to Leave, conduzidos, no entanto, como possibilidades simples na vida dos protagonistas. A famosa suspensão da descrença opera numa chave de intimidade com o interlocutor, a quem se avisa: o que segue não é exatamente real, mas vamos fazer de conta que poderia existir, tudo bem? Somos autorizados a rir, a comentar as improbabilidades sem parecerem equívocos do roteiro. Pelo contrário, isso faz parte do show.

O diretor atenua estas guinadas, de modo que nunca se tornem uma comédia pastelão. Pelo contrário: dotado de recursos de sobra para um cinema espetacular, Chan-wook se mostra comedido, intimista, encarando a própria obra como um filme pequeno em sua trajetória. Pode-se respeitar esta humildade assumida, proveniente de um diretor que, após demonstrar o gosto do sangue e do pop, começa a se apaixonar por uma forma autorreferencial e sarcástica de melodramas policiais. Aqui, a pergunta “você seria capaz de se apaixonar por uma assassina?” se converte em “Você seria capaz de se apaixonar por uma mulher que não é assassina?

Neste percurso singelo, o autor tem a possibilidade de comprovar sua maestria nas composições, nos lentos movimentos de câmera, e numa associação livre, improvável de ideias. A montagem de Kim Sang-bum associa o braço erguido da mulher jogando um celular ao mar com o braço de um rapaz apertando uma campainha e introduz um personagem no tempo presente dentro do flashback contado por ele. Enquanto isso, a fotografia cria planos e contra-planos no interior do enquadramento, com dois monitores lado a lado, e encontra uma maneira de sugerir o desejo sexual pelo plano de detalhe dos sapatos dos amantes.

A este propósito, há diversos símbolos que reaparecem e se revestem de significados ao longo da investigação. A manteiga de cacau, as tartarugas, o lenço umedecido, os dedos estalados das mãos, o ato de parar à beira do precipício, as mãos algemadas do policial e da suspeita na traseira do carro, encostando amorosamente os dedos, mostram a capacidade de beleza, afeto e humor combinados numa única imagem. Poucos diretores dominam a tragicomédia com tamanha coesão de tons formas quanto o sul-coreano.

Assim, o longa-metragem se converte num deleite cinematográfico, superando o magro roteiro em que se baseia. A insônia do detetive, clichê clássico do gênero, promove um ambiente hipnótico que as câmeras captam muito bem, enquanto a mulher fatal, porém irresistível, navega da jovem impertinente à matadora cruel em questão de segundos, graças a um zoom inesperado e à atuação brilhante de Tang Wei no papel feminino principal. Ela aparenta ser carinhosa e feroz, sincera e mentirosa, acessível e misteriosa, em simultâneo. Um papel dessa complexidade seria um presente a qualquer atriz, e Wei o abraça com gosto.

No fim, o sul-coreano efetua seu filme mais hitchcockiano até agora, com citações claras a Janela Indiscreta (1954) e Um Corpo que Cai (1958). Até o romance de investigador com a suspeita decorre das regras diretas destes referenciais. No entanto, o projeto do século XXI atribui um prazer cinéfilo da releitura, da subversão de expectativas, da articulação inesperada de imagens dentro de uma forma conhecida. Talvez isso seja pouco para uma obra de ambições realmente inovadoras, mas quem disse que os diretores são obrigados a inovar, certo? O arroz com feijão, nas mãos de um chef renomado, pode resultar numa experiência deliciosa.

Decision to Leave (2022)
8
Nota 8/10

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