Em primeiro lugar, o longa-metragem nos lembra de que Pepe, na história da América Central e do Sul, possui uma série de significados. Pepe é um famoso hipopótamo em desenho animado. Por este motivo, também foi o nome dado a um dos hipopótamos do traficante Pablo Escobar. Los Pepes se tornou o nome de um grupo paramilitar que se opôs ao colombiano. Entre várias conotações, o animal se aproximou de uma cultura política e social do país.
Neste filme, o diretor Nelson Carlos de los Santos Arias lembra que, em primeiro lugar, estes animais provêm da África, não das Américas. Decide então dar voz à criatura, enquanto protagonista e narradora em off de sua estranha aventura existencial, na condição de estrangeiro, perdido quanto ao seu lugar no mundo. Portanto, compreende-se que este herói possua quatro vozes (Jhon Narváez, Fareed Matjila, Harmony Ahalwa e Shifafure Faustinus) e fale em três línguas diferentes: o espanhol de sua nova casa, e o afrikaans e mbukushu.
Descrito desta maneira, o projeto pode soar mais linear e estruturado do que realmente é. Sentado na poltrona do cinema, o espectador se depara com uma experiência radical. Basta dizer que parte considerável dos estímulos decorrem de uma tela completamente preta, ou completamente branca, enquanto se escutam vozes e comunicações entre os soldados caçando Pepe. “Cabo Gonzales! Cabo Gonzales!”, repete a voz ao rádio. Às vezes, a tela se abre no formato 1 : 1.85, às vezes, fecha-se em 1 : 1.66. Às vezes, as imagens estarão profundamente coloridas, e depois, em preto e branco.
Um gesto retórico, muito contente em sua própria rebeldia, movido por uma estrutura que jamais justifica suas inúmeras guinadas de luz, cor e estilo.
O cineasta se diverte com as inúmeras possibilidades de filmagem e depois de montagem e cacofonia em pós-produção. Para o transporte dos hipopótamos, a cargo de duas crianças, a câmera se posiciona à frente do caminhão; aos pés da poltrona onde se encontram os garotos, em contra-plongée; e de cima da carroceria onde estão presos os hipopótamos. Uma longa briga entre Betania e Candelario será vista à distância, com a mulher retirada do enquadramento. Ignoramos a maneira como a esposa reage às provocações ininterruptas do pescador.
A estranheza enquanto finalidade pode cativar tantos espectadores, ou incomodar mais alguns. Afinal, Arias aproxima-se de uma aleatoriedade, um festival de recursos de estilo empregues porque sim, porque a liberdade artística lhe permite explorar a ferramenta que desejar, na hora que parecer mais interessante. Que tal um segmento a respeito do turismo, no qual o guia desumaniza os habitantes locais? E um carrinho sobre trilhos, com a câmera perseguindo o veículo da frente? Imagina um concurso de miss entre as garotas do povoado? A todas estas possibilidades, e mais algumas dezenas que lhe atravessam o espírito, o autor responde sim.
Logo, o projeto dispara em inúmeros alvos, sem realmente adotar nenhuma direção. Faz da dispersão seu modus operandi, numa recusa orgulhosa da linearidade, da narrativa convencional e da comunicação com o espectador. Afinal, jamais transmite nenhuma reflexão organizada a respeito de seus temas: o narcotráfico, o abuso dos animais, os símbolos de poder, as mitologias dos povos ribeirinhos, o turismo explorador, a indiferença em relação ao outro. Trata-se de questionamentos que perpassam a narrativa sem deixar vestígios.
Os diálogos do protagonista se provam igualmente misteriosos. “Este barco está navegando até a eternidade? Um novo mundo?”. “Quem é esse ‘ele’ que faz parte das minhas frases?”. Ele debate “a mescla barroca, excessiva, opaca, heterogênea”, “banindo a própria ideia de uma transparência aniquilante”. Ora, a que se referem este amontoado de evocações poéticas e vaporosas, para além do prazer do acúmulo de palavras, e do efeito hipnótico que provocam através da voz grave dos narradores?
Pepe nem sequer preserva o hipopótamo na função de protagonista capaz de dominar o ponto de vista, posto que o animal será deixado em segundo plano durante diversos pontos da trama. Os fragmentos em cena dificultam bastante a tarefa de imersão ou identificação do espectador, que se depara com um slideshow de estímulos curiosos, intrigantes, porém desprovidos de contextualização, aprofundamento, de causa e consequência, de relação com a sociedade e a política de hoje (seja na Colômbia, seja nos países africanos citados).
O resultado constitui um gesto retórico, muito contente em sua própria rebeldia, assinado pelos “Estúdios da Imaginação: Parte 1”. Haveria uma parte 2? As duas horas de exibição poderiam ter muito mais tempo, ou muito menos, sem prejuízo real às sequências associadas por um sentimento, uma estrutura que jamais justifica suas inúmeras guinadas de luz, cor e estilo.
Arias faz desta iniciativa um gesto retórico de arte pela arte, de subversão pelo prazer de subverter, sem acrescentar propostas ou reflexões por cima das estruturas demolidas. Em outras palavras, não parece defender, intelectualmente, conceito nenhum — nem politicamente, nem artisticamente. Trata-se de um cinema tão contente em se distinguir da média da produção autoral (de fato, não existe nada parecido com ele na mostra competitiva do Festival de Berlim) que faz do perpétuo estranhamento o seu ponto de partida, e também o ponto de chegada.