Perdido em Londres (2017)

O parque de atrações

título original (ano)
Lost in London (2017)
país
EUA, Reino Unido
gênero
Comédia, Policial
duração
103 minutos
direção
Woody Harrelson
elenco
Woody Harrelson, Owen Wilson, Eleanor Matsuura, Louisa Harland, Amir El-Masry, Naomi Battrick, Youssef Kerkour, Martin McCann, Rebecca Hazlewood, Zrinka Cvitesic, Tobi Bamtefa, David Avery, Willie Nelson, Bono Vox, Daniel Radcliffe
visto em
Streaming

A exibição deste longa-metragem começa de maneira bastante inusitada: com um vídeo de making of. Os letreiros fazem alarde: “Pela primeira vez!”, “Uma experiência inédita!”, em referência ao filme realizado ao vivo. “Maior do que Wimbledon!”, avisa o material, citando o escopo da produção. Seriam centenas de profissionais envolvidos, mais de 500 figurantes espalhados pela cidade. Nos ensaios, várias cenas deram errado. No dia da gravação, um alerta de bomba afetou uma das pontes onde o filme deveria ser realizado. Este fator também é apresentado com a alegria de quem traz uma nova informação empolgante, como quem afirma: “Tudo aponta para o fracasso. Será que eles vão conseguir?”.

Perdido em Londres tenta seduzir o espectador pela singularidade, pela raridade e estranheza do dispositivo. Como poderia um filme ocorrer ao vivo? Embora a dinâmica do longa inteiramente em plano-sequência já tenha sido explorada algumas vezes, a ideia da exibição em simultâneo chama a atenção. A performance ocorrendo em simultâneo com o olhar da plateia relembra o teatro (embora o público não esteja diante dos atores, algo fundamental na configuração teatral). Mesmo assim, a ideia de um teatro filmado soa menos pertinente do que a alegoria do circo.

Isso porque os criadores trazem o filme ao espectador como uma bizarrice, uma atração em si — independentemente de seu conteúdo. Ela interessaria pelo simples fato de existir, tal qual a mulher barbada, os palhaços espremidos num Fusca ou a contorcionista dobrando as pernas atrás do pescoço. Seu valor nasceria da raridade, da diferença em relação ao real. Normalmente, o cinema é demorado, construído, elaborado, montado. Aqui, em contrapartida, perde-se a qualidade de ça a été mencionada por Barthes (o fato do cinema como registro de um tempo passado, de algo que, em algum momento, esteve em frente às câmeras). 

“Venha ver essa maravilha! Um cinema do tempo presente! Um cinema com tudo para dar errado!”. Então vamos, fascinados pela perspectiva que o homenzinho possa ser devorado pelo leão, ou o equilibrista possa cair do fio e se estatelar no picadeiro. Uma arte que se vangloria da dificuldade, do inusitado, da picardia. Enquanto todos reclamamos da falta de originalidade no conteúdo e nas histórias (mais um Avatar, mais um Pinóquio, mais um Top Gun?), esta equipe nos oferece uma subversão da própria linguagem cinematográfica. Um cinema anticinema, uma arte com cara de traquinagem, de brincadeira.

O humor de desconforto depende de um trabalho específico de ritmo, de timing da montagem, de silêncios — tudo aquilo que a câmera única, a ausência de montagem a posteriori e a filmagem ininterrupta não permitem acontecer.

Passado o choque da própria existência deste filme, o que resta à experiência do espectador? O que o diretor Woody Harrelson teria a contar, a dizer, a mostrar durante cerca de 100 minutos de imersão? Ora, ele se baseia num fato ocorrido a si próprio, quando foi preso em Londres, por quebrar o cinzeiro de um táxi e fugir do veículo sem acertar as contas com o motorista. Em outras palavras, o cineasta, roteirista e ator principal decide aplicar o plano-sequência único à comédia — sendo esta a principal ousadia da iniciativa, ao invés da traquitana extravagante do registro ao vivo.

Entretanto, o humor de desconforto buscado pelo artista depende muito de um trabalho específico de ritmo, de timing da montagem, de silêncios, de valorização dos espaços — tudo aquilo que a câmera única, a ausência de montagem a posteriori e a filmagem ininterrupta não permitem acontecer. Harrelson coloca a si mesmo numa série infinita de quiproquós à noite, que incluem a descoberta de sua participação numa orgia, a festa com um príncipe iraniano, a tal briga com o taxista e o vômito na boca de uma hippie. Ele aposta firmemente nos diálogos para conduzir este tipo de perturbação — incluindo uma fala inicial, na qual o ator, interpretando uma versão de si próprio, defende a importância do humor, e seu valor em igual nível ao drama. 

Em contrapartida, o ritmo de urgência e a impossibilidade de intervir na iluminação em plena filmagem prejudicam muito a comédia. Algumas sequências, incluindo os convidados caindo no restaurante, com os cadarços amarrados; a briga com Owen Wilson no clube noturno e a interação com o príncipe numa van apertada deveriam render boas risadas, mas jamais superam um teor apressado, sem tempo para as punchlines assentarem, ou para os personagens sofrerem a consequência de seus atos. Nenhum diálogo funciona no sentido de provocar ou brincar com o real — prova de sua distância do cinema, do teatro e da performance, casos em que, com suas linguagens específicas, poderiam atribuir real peso a este mesmo texto.

A narrativa se envereda por caminhos insanos, mas também inverossímeis, beirando a aleatoriedade. Pouco faz sentido na jornada de Woody, o personagem fictício, encontrando figuras igualmente absurdas, que agem como malucos, paródias de seres que tampouco possuem função naqueles lugares. A espontaneidade, favorecida pela filmagem ao vivo, busca justificar uma série de eventos e atividades dispersas. Essas atividades não oferecem risco real ao protagonista, nem possuem função determinante nos rumos da trama. Ele está sendo perseguido, mas nunca fica claro por quem (vide a cena do homem “escondido” no escorregador da praça). Precisa voltar à esposa para pedir desculpas, embora não se entenda por que não o faz mais cedo. 

O filme dedica-se ao turbilhão ininterrupto de esquetes coladas entre si de modo a ocultar a costura, a sugerir uma viagem única, improvável, que tenta ser divertida (uma vez mais) pela singularidade. A falta de sentido, no caso, se converte em fim em si. Falta um ponto de vista à trajetória: ainda que a câmera se cole ao corpo e rosto do protagonista, não temos acesso aos seus próximos passos, às angústias, aos desejos. Por isso, seus gestos resultam fortuitos, fracos. É difícil se identificar com quem quer que seja, ou torcer por alguém e por algum desfecho específico. 

Mesmo assim, o homem machista e traidor será desculpado em questão de horas, porque o roteiro estima ser melhor introduzir um final feliz e abrupto. Nesta representação pouco animadora das figuras femininas, e bastante permissiva com os pobres homens que “derrapam”, a comédia está longe de soar tão moderna e inovadora quanto pretende. O melhor momento, e talvez o único dentro deste formato, venha de um “sonho”, ou alucinação, no interior da cadeia, quando o giro numa cela permite a aparição de um personagem-fantasma que desaparece em seguida. Dilui-se a noção de campo e fora de campo, de cena e sequência, efetuando uma montagem dentro do plano. 

A sequência com Willie Nelson nos lembra que o plano-sequência ao vivo poderia oferecer algo rico e empolgante, caso o autor explorasse as fronteiras da linguagem. Ora, em grande parte do filme, resta apenas uma câmera espremida no canto do carro, filmando da única maneira que consegue, apressando-se para subir e descer escadas, tentando não refletir nos vidros e espelhos, mas aparecendo na sombra projetada sobre a esposa Laura (Eleanor Matsuura). Não, o projeto não “deu errado” como poderia dar. Ninguém esqueceu as falas; a câmera resistiu a problemas de captação, e o som se mostra razoável.

Em contrapartida, seria possível dizer que Perdido em Londres “deu certo”, visto pela perspectiva de rendimento alardeada pelo próprio making of de abertura? Afinal, nenhuma cena se destaca pela estética, o humor teima em funcionar e encontrar seu tempo, os atores estão deslocados ou desconfortáveis como dispositivo (caso de Matsuura). O longa-metragem tem pouco a dizer a respeito de seus temas, a exemplo da fama, da masculinidade, da impossibilidade de controlar o acaso. Exibido aos brasileiros em 2022, numa versão gravada, ele nem sequer sustenta o caráter de “ao vivo” alardeado em 2017, durante sua exibição única. Agora, nós o vemos na condição de obra comum, em seu tempo passado. Sabemos, pela distância com o ano de realização, que ela não “deu errado”, que foi levada ao fim de sua pretensão. 

Assim, terminamos a sessão munidos da alegria modesta de quem assistiu ao trapezista concluir sua travessia, e o leão se comportar gentilmente perto do treinador. Entre mortos e feridos, salvaram-se todos. O filme alardeava o risco empolgante de não existir; pois bem, existiu. Voltamos à nossa rotina pós-filme com a mesma sensação de previsibilidade e reconforto trazida pela performance do contorcionista, que enche os olhos, impressiona, mas e depois? O que restará na cabeça, para além da atração pitoresca de um malabarismo? O resultado funciona enquanto circo ou parque de atrações. Pena que o cinema é, ou deveria ser, muito mais do que isso.

Perdido em Londres (2017)
4
Nota 4/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.