Pereio, Eu Te Odeio (2023)

A imagem de terceiros

título original (ano)
Pereio, Eu te Odeio (2023)
país
Brasil
linguagem
Documentário
duração
99 minutos
direção
Tasso Dourado, Allan Sieber
com
Paulo César Pereio, Stepan Nercessian, Hugo Carvana, Cissa Guimarães, Allan Sieber, Tasso Dourado
visto em
Fest Aruanda 2023

É claro que um ator como Paulo César Pereio não poderia receber uma homenagem convencional, em moldes “do nascimento ao túmulo — melhores momentos”. O intérprete de alguns dos filmes mais importantes do cinema brasileiro (Os Fuzis, Terra em Transe, Bang Bang, Toda Nudez Será Castigada, Iracema — Uma Transa Amazônica, Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia, A Dama do Lotação) sempre foi conhecido como uma figura de exceção.

Isso significa que ganhou a fama de “pessoa difícil”, incontrolável por parte dos diretores e produtores; explosivo e espontâneo pela perspectiva dos colegas de cena. Alguns intérpretes se tornam mais renomados pela persona construída fora dos palcos do que pela atuação em si. Pereio se junta a este grupo. Acumula as histórias de brigas, prisão, alcoolismo, drogas, acidentes, falas grosseiras, jocosas ou inapropriadas. Mesmo assim, foi requisitado pelos maiores cineastas, visto que o resultado em cena sempre se provou de altíssimo nível.

Tornou-se um raro ator simultaneamente famoso e desconhecido; frequente e esquecido — as contradições parecem apropriadas para descrevê-lo. Atuou em mais de 60 produções, e teve seu rosto e a voz multiplicados nas telas, ainda que a nova geração dificilmente saiba nomeá-lo. Fez-se onipresente, ainda que muitas vezes por meio de personagens coadjuvantes, e pelas impressões de terceiros nas mídias, o que inclui a disseminação de fofocas e lendas a respeito dele. Hoje, poucos se lembram que o intérprete idoso habita a Vila dos Artistas, onde aparenta ser pouco frequentado. 

Compreendemos o que faz de Pereio um ator exótico, um ator estranho, insano, raro. Mas não sabemos o que faz dele um ator bom, capaz de atravessar décadas de filmografia nacional.

Os diretores Allan Sieber e Tasso Dourado veem nesta personalidade complexa o material perfeito para um filme engraçado, e distante dos moldes elogiosos que se proliferam entre as cinebiografias. O título parte desta provocação: a obra dedicada ao anti-herói, ao personagem infame, que amamos detestar, ou detestamos amar — como preferirem. Todos os entrevistados, o que inclui os filhos e ex-companheiras do ator, são convidados a disparar um sonoro “Pereio, eu te odeio!” à câmera.

O resultado está repleto de qualidades notáveis, tanto pelas decisões tomadas quanto pelas armadilhas que consegue contornar. Roteiro e montagem evitam o caráter linear, descritivo e didático. Não sabemos quando Pereio nasceu, sua relação com os pais, de onde surgiu a paixão pelas artes dramáticas, seus primeiros passos neste ofício, etc. Tampouco descobrimos os prêmios ou reconhecimentos que tenha recebido, ou ainda as melhores performances da carreira: os trechos de filmes utilizados pela montagem se equivalem em termo de duração e importância.

Isso significa que os depoimentos de pessoas próximas dispensam a necessidade de frisar suas virtudes de atuação. Deduz-se que Pereio seja um artista de muito talento, até por menções rápidas aqui e acolá, porém desconhecemos as características deste ator. O que faz dele tão grandioso? Que valores oferece à cena, aos projetos dos quais participou? Que técnicas desenvolveu, de que maneira trabalha corpo, voz, expressões, interação com colegas de cena? Sabemos muito pouco. O protagonista interessa mais aos criadores enquanto personalidade, enquanto pessoa física, do que como ator.

Este recorte favorece o humor e a espontaneidade. É hilário escutar a Hugo Carvana, Cissa Guimarães, Stepan Nercessian, Maitê Proença e tantos outros narrando as bebedeiras, o mau cheiro que causava transtorno ao gravar cenas de sexo, a vez em que pediu aos policiais para ser preso, ou decidiu buscar cocaína em frente às autoridades. A partir do momento em que os filhos, os melhores amigos e colegas se autorizam este tipo de confissões, o projeto se converte numa divertida mesa de bar, com recordações improváveis a respeito de um sujeito sem limites.

Em contrapartida, o foco quase exclusivo nas peripécias e anedotas retira o foco de Pereio enquanto profissional. Embora nunca seja ridicularizado pelos testemunhos, nem idealizado — duas ciladas que os autores evitam habilmente —, ele ainda se reduz à figura do enfant terrible, a figura de exceção, o artista avesso às regras e códigos de moral. Há certo prazer descobrir indivíduos capazes de desempenhar uma série de ações que nós talvez gostássemos de fazer, mas não faríamos, graças a um freio moral inexistente em Pereio. Ele representa um acesso quase selvagem, sem filtros, aos desejos e pulsões.

Logo, a carreira fica em segundo plano. As cenas extraídas dos filmes se mostram curtíssimas, servindo apenas para comprovar que o ator, de fato, participou de inúmeros projetos. No entanto, somos incapazes de detectar as razões pelas quais ele seria tão amado, apesar do desafio evidente de aturá-lo no dia a dia. Compreendemos o que faz de Pereio um ator exótico, um ator estranho, insano, raro. Mas não sabemos o que faz dele um ator bom, capaz de atravessar décadas de filmografia nacional.

O protagonista, ainda vivo e disponível a conversas (inclusive, disposto a recriar uma cena de Bang Bang para as câmeras), será construído por esta imagem lendária de terceiros. Nunca se permite que fale por si próprio e controle o discurso da narrativa acerca de sua vida. Não há diferentes versões a respeito dos fatos evocados, nem percepções distintas neste amálgama de vozes. Dourado e Sieber preferem que o personagem seja construído pelo acúmulo de trechos improváveis. Preferem filmar o casamento de uma ex-companheira a conversar durante mais tempo com o próprio artista.

Além disso, Sieber se torna um dos personagens centrais, testemunhando a respeito da dificuldade de concretizar o projeto que se desenvolveu por vinte anos até a conclusão. Dourado, que se juntou à iniciativa anos mais tarde, também entrevista a si mesmo. Curiosamente, os obstáculos na concretização do filme se transformam em tema deste mesmo filme — a obra incorpora seu making of. Juntos, eles preservam esta imagem respeitosa, porém cuidadosamente limitada, do valor e das especificidades de Pereio na cinematografia brasileira. Há provas mais que suficientes de seu temperamento intempestivo. Há indícios raros, entretanto, das relações de causa e consequência, dos orgulhos e arrependimentos, da autoavaliação do ator a respeito de seu percurso. Os diretores evocam o mito Pereio não para desconstruí-lo, mas para reforçá-lo.

Pereio, Eu Te Odeio (2023)
6
Nota 6/10

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