É claro que um ator como Paulo César Pereio não poderia receber uma homenagem convencional, em moldes “do nascimento ao túmulo — melhores momentos”. O intérprete de alguns dos filmes mais importantes do cinema brasileiro (Os Fuzis, Terra em Transe, Bang Bang, Toda Nudez Será Castigada, Iracema — Uma Transa Amazônica, Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia, A Dama do Lotação) sempre foi conhecido como uma figura de exceção.
Isso significa que ganhou a fama de “pessoa difícil”, incontrolável por parte dos diretores e produtores; explosivo e espontâneo pela perspectiva dos colegas de cena. Alguns intérpretes se tornam mais renomados pela persona construída fora dos palcos do que pela atuação em si. Pereio se junta a este grupo. Acumula as histórias de brigas, prisão, alcoolismo, drogas, acidentes, falas grosseiras, jocosas ou inapropriadas. Mesmo assim, foi requisitado pelos maiores cineastas, visto que o resultado em cena sempre se provou de altíssimo nível.
Tornou-se um raro ator simultaneamente famoso e desconhecido; frequente e esquecido — as contradições parecem apropriadas para descrevê-lo. Atuou em mais de 60 produções, e teve seu rosto e a voz multiplicados nas telas, ainda que a nova geração dificilmente saiba nomeá-lo. Fez-se onipresente, ainda que muitas vezes por meio de personagens coadjuvantes, e pelas impressões de terceiros nas mídias, o que inclui a disseminação de fofocas e lendas a respeito dele. Hoje, poucos se lembram que o intérprete idoso habita a Vila dos Artistas, onde aparenta ser pouco frequentado.
Compreendemos o que faz de Pereio um ator exótico, um ator estranho, insano, raro. Mas não sabemos o que faz dele um ator bom, capaz de atravessar décadas de filmografia nacional.
Os diretores Allan Sieber e Tasso Dourado veem nesta personalidade complexa o material perfeito para um filme engraçado, e distante dos moldes elogiosos que se proliferam entre as cinebiografias. O título parte desta provocação: a obra dedicada ao anti-herói, ao personagem infame, que amamos detestar, ou detestamos amar — como preferirem. Todos os entrevistados, o que inclui os filhos e ex-companheiras do ator, são convidados a disparar um sonoro “Pereio, eu te odeio!” à câmera.
O resultado está repleto de qualidades notáveis, tanto pelas decisões tomadas quanto pelas armadilhas que consegue contornar. Roteiro e montagem evitam o caráter linear, descritivo e didático. Não sabemos quando Pereio nasceu, sua relação com os pais, de onde surgiu a paixão pelas artes dramáticas, seus primeiros passos neste ofício, etc. Tampouco descobrimos os prêmios ou reconhecimentos que tenha recebido, ou ainda as melhores performances da carreira: os trechos de filmes utilizados pela montagem se equivalem em termo de duração e importância.
Isso significa que os depoimentos de pessoas próximas dispensam a necessidade de frisar suas virtudes de atuação. Deduz-se que Pereio seja um artista de muito talento, até por menções rápidas aqui e acolá, porém desconhecemos as características deste ator. O que faz dele tão grandioso? Que valores oferece à cena, aos projetos dos quais participou? Que técnicas desenvolveu, de que maneira trabalha corpo, voz, expressões, interação com colegas de cena? Sabemos muito pouco. O protagonista interessa mais aos criadores enquanto personalidade, enquanto pessoa física, do que como ator.
Este recorte favorece o humor e a espontaneidade. É hilário escutar a Hugo Carvana, Cissa Guimarães, Stepan Nercessian, Maitê Proença e tantos outros narrando as bebedeiras, o mau cheiro que causava transtorno ao gravar cenas de sexo, a vez em que pediu aos policiais para ser preso, ou decidiu buscar cocaína em frente às autoridades. A partir do momento em que os filhos, os melhores amigos e colegas se autorizam este tipo de confissões, o projeto se converte numa divertida mesa de bar, com recordações improváveis a respeito de um sujeito sem limites.
Em contrapartida, o foco quase exclusivo nas peripécias e anedotas retira o foco de Pereio enquanto profissional. Embora nunca seja ridicularizado pelos testemunhos, nem idealizado — duas ciladas que os autores evitam habilmente —, ele ainda se reduz à figura do enfant terrible, a figura de exceção, o artista avesso às regras e códigos de moral. Há certo prazer descobrir indivíduos capazes de desempenhar uma série de ações que nós talvez gostássemos de fazer, mas não faríamos, graças a um freio moral inexistente em Pereio. Ele representa um acesso quase selvagem, sem filtros, aos desejos e pulsões.
Logo, a carreira fica em segundo plano. As cenas extraídas dos filmes se mostram curtíssimas, servindo apenas para comprovar que o ator, de fato, participou de inúmeros projetos. No entanto, somos incapazes de detectar as razões pelas quais ele seria tão amado, apesar do desafio evidente de aturá-lo no dia a dia. Compreendemos o que faz de Pereio um ator exótico, um ator estranho, insano, raro. Mas não sabemos o que faz dele um ator bom, capaz de atravessar décadas de filmografia nacional.
O protagonista, ainda vivo e disponível a conversas (inclusive, disposto a recriar uma cena de Bang Bang para as câmeras), será construído por esta imagem lendária de terceiros. Nunca se permite que fale por si próprio e controle o discurso da narrativa acerca de sua vida. Não há diferentes versões a respeito dos fatos evocados, nem percepções distintas neste amálgama de vozes. Dourado e Sieber preferem que o personagem seja construído pelo acúmulo de trechos improváveis. Preferem filmar o casamento de uma ex-companheira a conversar durante mais tempo com o próprio artista.
Além disso, Sieber se torna um dos personagens centrais, testemunhando a respeito da dificuldade de concretizar o projeto que se desenvolveu por vinte anos até a conclusão. Dourado, que se juntou à iniciativa anos mais tarde, também entrevista a si mesmo. Curiosamente, os obstáculos na concretização do filme se transformam em tema deste mesmo filme — a obra incorpora seu making of. Juntos, eles preservam esta imagem respeitosa, porém cuidadosamente limitada, do valor e das especificidades de Pereio na cinematografia brasileira. Há provas mais que suficientes de seu temperamento intempestivo. Há indícios raros, entretanto, das relações de causa e consequência, dos orgulhos e arrependimentos, da autoavaliação do ator a respeito de seu percurso. Os diretores evocam o mito Pereio não para desconstruí-lo, mas para reforçá-lo.