Pluft, o Fantasminha (2022)

Inocência high-tech

título Original (ano)
Pluft, O Fantasminha (2022)
país
Brasil
gênero
Fantasia, Infantil, Comédia
duração
87 minutos
direção
Rosane Svartman
elenco
Nicolas Cruz, Lolla Belli, Fabíula Nascimento, Juliano Cazarré, Lucas Salles, Arthur Aguiar, Hugo Germano, José Lavigne, Daniela Cecato Barbyeri, Gregório Duvivier, Orã Figueiredo, Simone Mazzer
visto em
Cinemas

Pluft: O Fantasminha constitui um animal raro no cinema brasileiro. Por um lado, ele conta com os aparatos mais rebuscados de produção e efeitos visuais que nossa cinematografia é capaz de proporcionar. A obra é realizada em 3D, incluindo filmagens subaquáticas, muitos drones e maquetes, além de cenários criados inteiramente em computação gráfica. Há “valor de produção” suficiente para encher os olhos do público com cenários e locações deslumbrantes. 

Por outro lado, tamanha estrutura se põe a serviço de uma trama singela, no caso, a adaptação da peça homônima de Maria Clara Machado, escrita na década de 1950. Trata-se de uma fábula carinhosa a respeito da amizade entre um garoto fantasma e uma menina humana, aprendendo a conviver com as diferenças. No caminho, descobrem sua força interior, a confiança na proteção dos pais e o valor das amizades incondicionais. Há otimismo e candura em doses fartas ao longo da aventura adaptada incontáveis vezes nos palcos brasileiros.

Desta vez, a diretora Rosana Svartman aproveita a terceira dimensão para fazer com que o fantasma venha em direção ao público. Ela compara a flutuação destes seres etéreos com o estado de mergulhar numa piscina (onde, de fato, mergulhou os atores durante as filmagens. Em paralelo, cria pastéis de vento que brilham no escuro do casarão decadente, e longos voos pelas planícies litorâneas, quando o pequeno Pluft (Nicolas Cruz) carrega sua amiga Maribel (Lola Belli).

Os recursos impressionam. Há cuidado na construção de cenários, figurinos e luzes, ainda que pareçam um tanto deslocados do real rumo em prol de teor asséptico — vide as roupas impecavelmente limpas e passadas dos amigos atrapalhados, após passarem por uma epopeia à procura de Maribel. No entanto, a fantasia serve como desculpa para estas e outras licenças poéticas: o pirata que sequestra a criança sem qualquer tentativa de impedimento por parte das dezenas de adultos presentes; um tio guardando segredos valiosíssimos, mas que ninguém ousa acordar porque, afinal, o sujeito está cansado demais e prefere dormir.

Surge um orgulho de constatar nosso cinema, em fase tão politicamente fragilizada, lançando uma obra destas proporções. Turma da Mônica e D.P.A. têm resgatado um cinema infantil de qualidade e esmero técnico, superando a crença de algumas produções isoladas, segundo as quais os pequenos se contentariam com qualquer correria colorida, musical e repleta de mensagens ao término da sessão. Pluft e os outros casos citados preocupam-se em apresentar um bom cinema.

Se o polimento da produção merece aplausos, talvez o ritmo e a visão de mundo sejam mais questionáveis.

Se o polimento da produção merece aplausos, talvez o ritmo e a visão de mundo sejam mais questionáveis. Embora a obra transmita valores universais, a exemplo da união e da amizade, ela poderia se preocupar com um olhar contemporâneo. Pluft: O Fantasminha carrega uma ingenuidade exagerada, tanto pelos acontecimentos quanto pelas atuações, soando descolado do século XXI. O pirata faz caretas por ser verdadeiramente mau; a mãe cuida do filho com olhar sublinhado de amor, enquanto passa o dia presa à cozinha, preparando pastéis de vento. Já os bares servem somente de ringue de luta.

Esta disposição soa apartada do nosso mundo. Produções infantis emocionantes e complexas em termos psicológicos podem aproveitar malícias e ambiguidades. Elas conseguem superar o maniqueísmo evidente, enquanto retiram a mulher do “habitat comum” no espaço doméstico, ou deslocam os homens da obrigatoriedade de aventura, conquista e força física. Mesmo os fracotes desta história ainda comprovam alguma coragem, apartada de sua real capacidade de luta — ou seja, eles podem perder, mas prestam-se ao combate.

Ora, neste mundo, os personagens falam de maneira bem ar-ti-cu-la-da, abrem bem a boca para expressar espanto, riem muito quando estão felizes, e repetem as falas alheias para facilitar a compreensão do jovem espectador. “Ele está no baú”. “No baú?”. “Dentro do barco!”. “Dentro do barco?”. A compreensão do mundo, já simplificada, é sublinhada duas ou três vezes para fins pedagógicos. É claro que o bem vencerá o mal, e o vilão será punido pelo descumprimento das normas. O caráter funcional e moral do texto de partida segue intacto, assim como a visão clownesca do mundo adulto, e a percepção de que os problemas tendem a se resolver, mais cedo ou mais tarde, pois essa seria a ordem natural das coisas. Politicamente, este ponto de vista é discutível.

Em termos cinematográficos, a mise en scène falha em trabalhar dois aspectos fundamentais: o espaço e o tempo. Nunca conhecemos as partes que compõem a grande casa de Pluft, nem o vemos explorá-la. A cidade se situa perto do imóvel à beira-mar? Pluft e sua mãe costumam sair ocasionalmente? Já o sequestro de Maribel pelo perigoso Perna de Pau despreza o medo, a tensão, o senso de urgência: a menina fica no local, espera, entedia-se, descobre que pode sair correndo porta afora. Quando vê o inimigo chegar, lamenta pela própria sorte, ao invés de bolar um plano de fuga.

O sentido de inevitabilidade se descola dos tempos presentes. O pirata enxerga o baú onde estaria seu precioso tesouro, mas decide que já está escuro demais lá fora, e prefere voltar amanhã. A mãe de Pluft sabe dos perigos que ocorrem nos cômodos de sua casa, porém decide não se envolver. Há pouco esforço ou ambição por parte dos personagens, o que inclui a trinca de amigos patetas. Convenientemente, a história se esquece deles durante dezenas de minutos, apenas para retomá-los quando são convenientes.

Juliano Cazarré e Fabíula Nascimento são ótimos atores, dotados de versatilidade e de uma entrega generosa a esta forma de atuação caricatural. No caso da trinca de aventureiros, as prestações possuem níveis e dotes cômicos radicalmente desiguais. O tio Gerúndio, infelizmente, fica subaproveitado na trama, em chave oposta à taberna, construída em grandes proporções, e ocupando tempo considerável da narrativa, apesar da função narrativa irrelevante.

Por fim, talvez fosse importante trazer Pluft à sociedade contemporânea. Isso não implica em incorporar telefones celulares ou redes sociais, apenas uma compreensão mais veloz da infância, menos idealizada e edulcorada. Para discutir de fato o preconceito, a desconfiança da menina com o fantasma, e vice-versa, poderia durar mais do que um minuto, e tudo não precisaria se resolver magicamente rumo à conclusão. Crianças conseguem absorver mais complexidade do que se estimava setenta anos atrás, e o cinema deve acompanhar este processo.

Pluft, o Fantasminha (2022)
6
Nota 6/10

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