“A dor também ensina / A vagar pelas ruínas / E renascer do nada”. Uma das canções entoadas em Praia Formosa resume de maneira eficaz o movimento deste longa-metragem. Filma-se literalmente a figura de mulheres negras, cujas ascendentes foram escravizadas num passado não tão distante, perambulando pelo urbanidade desolada do cais do Porto, no Rio de Janeiro. Elas dançam entre ruas de concreto quebrado, guindastes e escavadeiras. Para a diretora Julia de Simone, trata-se da região específica onde atracavam os navios negreiros.
No centro da trama há Muanza (Lucília Raimundo), heroína que atravessa os séculos. No passado, servia à esposa portuguesa de um homem importante, passando seus dias no interior do oponente casarão. No presente, perambula pelas ruínas do mesmo imóvel, refletindo acerca do significado desta construção, e procurando pela pequena Kieza, afastada dos seus cuidados. Ela transita por espaços e tempos diferentes, labirínticos, circulares. Aparenta habitar um pesadelo, movido por regras particulares e prazo determinado para o término.
O longa-metragem pode soar hermético devido à disposição a embaralhar peças e entrelaçar fluxos. Cenas são interrompidas e retomadas adiante; conflitos podem ter ocorrido de fato, ou apenas corresponderem a devaneios dos personagens. A chuva que promove a aproximação entre duas mulheres negras, atualmente, parece ser a mesma que desperta a inundação e o declínio da Casa Grande, no passado. O que realmente acontece neste percurso, e o que diz respeito ao mundo das ideias? Ora, importaria efetuar tal distinção?
Praia Formosa se desenvolve entre as liberdades do cinema experimental e o acolhimento materno e generoso destas mulheres que parecem se compreender apenas pelo olhar.
A ambientação etérea surge desde as primeiras cenas, quando a chegada do navio ao Rio de Janeiro é acompanhada por imagens borradas, como revestidas por uma névoa ou sujeira. Adiante, uma mulher em trajes afrodiaspóricos observa o caos da gentrificação no porto. Ela estaria realmente presente? A autora convida o espectador a se perder, ao invés de se encontrar. Contrariando inúmeras iniciativas de explicação de episódios históricos, ela deseja, em primeiro lugar, evocá-los poeticamente. Neste projeto, efetuar as boas perguntas se prova mais importante do que fornecer respostas.
A obra se insere neste movimento que, além de empregar ferramentas da fantasia (posto que a realidade só pode ser compreendida quando se distancia dela), também funde, numa única narrativa, o passado e o presente. Filmes como Todos os Mortos (2020), de Marco Dutra e Caetano Gotardo; Cabana (2023), de Adriana de Faria, e mesmo Cavalo (2020), de Rafhael Barbosa e Werner Salles Bagetti, sugerem por meio da fusão de temporalidades que ainda não superamos o passado, e nossas falhas sociais seriam determinantes para a compreensão da contemporaneidade.
Por isso, a mulher do passado dança nas ruas urbanizadas do presente, e outra personagem, no presente, efetua buscas acerca do passado. Por um lado, figuras de ficção revelam à câmera o histórico de sua escravidão, por outro, uma mãe de santo do século XXI explica sua relação com a terra e os ancestrais. Trata-se de movimentos fluidos, interligados, circulares. Praia Formosa rompe com a linearidade histórica, percebida enquanto encadeamento de fatos numa lógica de causa e consequência, de antes e depois. Aqui, os acontecimentos irrompem em paralelo, tanto na vida quanto nos sonhos.
Neste contexto, os espaços serão personagens de importância equivalente àquela das figuras humanas que os ocupam. A imagem decadente do casarão representa a falência (moral e econômica) dos exploradores de povos negros no Brasil. Os criadores não precisam colocar em diálogos o anacronismo desta dominação: basta plantar nos cômodos em ruínas a figura de uma senhora portuguesa, exigindo ser servida pela criada negra. A conta não fecha mais; as regras da sociedade atual não comportam tais relações. O estranhamento constitui meio e finalidade, neste caso.
Além disso, a cineasta permite a implementação de pequenas rebeldias, sinais de não-conformidade dos povos escravizados. Teria sido muito fácil conceber heroínas que revertem, sozinhas, um sistema político duradouro por meio de sua força de vontade (em modelo hollywoodiano, digamos). Julia de Simone prefere o caminho das subversões íntimas, pontuais: a transcrição voluntariamente equivocada de uma carta, a recusa em ajudar a senhora nas tarefas que esta poderia facilmente desempenhar sozinha. Dizer “meus braços estão cansados”, e depois planejar a morte da senhoria (de maneira efetiva ou sonhada, que importa?) constitui uma sugestão importante de ruptura com as normas.
No elenco, Lucília Raimundo se destaca pela composição inesperada desta mulher. Em sua interpretação, Muanza carrega um misto de ingenuidade infantil com desconhecimento total dos meios que ocupa, como se fosse uma alienígena chegando à Terra. Ao mesmo tempo, transmite uma doçura e tranquilidade avessas ao imaginário da mulher vingadora, revanchista. Ela paira através de espaços e tempos, flutua por sobre as ruas e cômodos. Torna-se uma presença ausente — algo apropriado para a perspectiva fantasmática da História brasileira.
Frente a ela, Maria D’Aires oferece uma gestualidade mais clássica, embora ainda compreenda bem esta zona fronteiriça com o realismo fantástico. Ao final, Praia Formosa se desenvolve entre as liberdades do cinema experimental (os flashes de imagens díspares, os delírios do passado) e o acolhimento materno e generoso destas mulheres que parecem se compreender apenas pelo olhar. As imagens podem ser selvagens, mas suas personagens transbordam de doçura.