Presença (2024)

O corpo e o pixel

título original (ano)
Presença (2024)
país
Brasil
linguagem
Documentário, Experimental
duração
71 minutos
direção
Erly Vieira Jr.
elenco
Marcus Vinícius, Rubiane Maia, Castiel Vitorino Brasileiro, Augusto Brasileiro, Manuel Vason, Tom Nóbrega, Tatiana Rosa
visto em
31º Festival de Vitória (2024)

Presença se mostra um filme muito claro em seus interesses. O diretor Erly Vieira Jr. acompanha os trabalhos de três artistas capixabas: Marcus Vinícius, Rubiane Maia e Castiel Vitorino Brasileiro, que efetuam performances para a câmera. Eles explicam os conceitos por trás das criações relacionadas às suas raízes afro-brasileiras, sua sexualidade, sua identidade de gênero e mesmo indagações mais amplas a respeito do tempo e do espaço.

Castiel, por exemplo, apresenta aos familiares uma dança executada diretamente sobre a terra, de forte expressividade corporal. Rubiane Maia manipula grandes objetos no alto de uma montanha, em sua pesquisa a respeito da preparação para o voo. Já Marcus Vinícius manipula o fogo e os locais abandonados enquanto confronta sua nudez à natureza. A câmera se aproxima destas apresentações, buscando o corpo de Rubiane num contraplongée, ou contornando o espaço esférico por onde se desloca Castiel. Utiliza, em paralelo, imagens de arquivo (mais distanciadas e frias) dos projetos de Marcus Vinícius.

O longa-metragem rompe com a estrutura clássica e explicativa, privilegiando uma narrativa costurada de maneira livre pela montagem. Os protagonistas se alternam em paralelo, sem necessariamente evoluírem rumo a uma conclusão específica acerca de sua arte ou de sua subjetividade. Desaparece, portanto, o senso de finalidade, a noção de que o cineasta nos apresenta estes indivíduos para nos dizer algo específico. Os trabalhos são oferecidos sem qualquer forma de pedagogia aos nossos olhos e ouvidos. Cabe ao espectador extrair a interpretação que lhe encaixar no repertório pessoal.

O principal valor do documentário reside na importância evidente que as performances desempenham para seus criadores.

Em termos estéticos e de linguagem, no entanto, a obra capixaba desperta alguns questionamentos. É evidente que os criadores contam com orçamento limitado, razão pela qual as filmagens exploram a textura digital de baixa qualidade. Na grande tela do cinema, os pixels se multiplicavam e chamavam tanta atenção para si mesmos quanto para os corpos performando em cena. Às vezes, o serrilhado desta natureza digital (sobretudo nas imagens de arquivo de Marcus Vinícius, ainda mais comprometidas) roubava o protagonismo dos artistas.

Esta questão poderia ser explorada e incorporada por Vieira Jr. enquanto forma de debate. Nossa relação com as tecnologias de (auto)captação, a influência dos meios digitais na arte contemporânea, a rápida transformação das texturas, luzes e cores no cinema de baixos recursos seriam temas interessantes, e pertinentes à experiência. No entanto, o documentário evita justificar um aspecto tão distinto daquele encontrado de costume nas salas de cinema — e, felizmente, Presença sai do Festival de Vitória com data de estreia marcada no circuito comercial.

Logo, é possível sustentar que os ruídos e asperezas constituam os verdadeiros reis e rainhas deste baile. A sessão se inicia com sons altíssimos de vento, e outros (seriam búzios?) num volume que levava os espectadores a questionarem se a provocação constituía uma escolha estética, ou um problema de equalização de som na sala de cinema. Adiante, a qualidade se reduz de tal maneira nas performances de Marcus Vinícius que acaba por esconder sua nudez no mar de pixels — caso em que, voluntariamente ou não, a textura comprometida produz certa forma de poesia.

De resto, desperta a impressão de uma indefinição conceitual, ou de um longa-metragem finalizado às pressas. O trabalho de letreiros indicativos se mostra simplíssimo em termos de design, e às vezes mistura os nomes em português com um “Stockholm”, ao invés de Estocolmo. Na apresentação de Castiel, o boom entra em quadro, a câmera se chacoalha freneticamente para todos os lados, sem saber ao certo onde se focar, por quanto tempo. Resta a impressão de que esta dança da fotografia com a performance não necessariamente corresponde ao modo mais potente de valorizar o trabalho alheio — afinal, vemos pouco da gestualidade da criadora, posto que a direção de fotografia insiste em capitalizar o foco para si mesma.

Ora, como o público (em galerias, museus e ao vivo) acolhe estas obras contemporâneas, parte etéreas, parte dolorosamente corporais? É curioso que as criações sejam apresentadas enquanto manifestações descoladas da sociedade, dos espectadores e das regras do mercado. Iniciam-se e se encerram em si próprias. Sabemos que o três viajaram a muitas cidades, mas isso significaria sucesso internacional? De que maneira suas pesquisas evoluíram, ou como esta arte se completou nos olhares de culturas tão distintas? Mistério. 

Ao final, Presença levanta mais dúvidas do que reflexões. As legendas sem som referente seriam uma forma de performance da própria direção? Durante as andanças de Marcus Vinícius pelo Rio de Janeiro, coberto com fitas “frágil”, a obra ocorre de fato no semblante de perplexidade dos passantes? Neste caso, por que vemos tão pouco de suas reações? Por que nunca esclarecer quais registros provêm dos personagens, e quais foram produzidos para o filme — caso da sombra em positivo, interagindo com a pessoa real? Por que citar elementos da morte de um dos artistas, e adentrar os sonhos para o futuro de Castiel, se Rubiane nunca ganha a oportunidade de se desvendar em chave pessoal e íntima?

“Eu respiro por necessidade, e pelo prazer de respirar. Eu respiro pelas vítimas da Covid. Eu respiro para superar a morte”. Nesta fala de Rubiane, substitua “respirar” por “fazer arte”. O principal valor do documentário reside na importância evidente que as performances desempenham para seus criadores. Compreendemos que estas elaborações equivalham a uma forma de estar no mundo, enquanto corpos e identidades à norma. Entretanto, ainda é incerto o que a direção pensa a respeito deles, como se comunica com estas figuras, e quais discursos pretende articular a partir da obra alheia. 

Presença (2024)
5
Nota 5/10

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