Quando a Luz Arrebenta (2024)

Quando duas mulheres sofrem

título original (ano)
Ljósbrot (2024)
país
Islândia, Holanda, Croácia, França
gênero
(Melo)drama
duração
82 minutos
direção
Rúnar Rúnarsson
elenco
Elín Hall, Mikael Kaaber, Katla Njálsdóttir, Baldur Einarsson, Gunnar Hrafn Kristjánsson, Ágúst Wigum
visto em
48ª Mostra de São Paulo (2024)

“A amante sempre vai chorar até dormir
A amante nunca vai ter o amor dele para si
E, conforme os anos se passam, a amante
Vai ficar sozinha”
Nina Simone, The Other Woman

Na primeira cena deste drama, Una (Elín Hall) está “cansada de viver em segredo”, em suas palavras. O espectador ainda nem a conhece, tampouco compreende o grau do envolvimento com Diddi, porém sabe que os dois vivem seu amor intensamente. Dormem juntos, pensam em viagens para lugares distantes, mencionam os bebês que teriam. Na cena seguinte, Diddi morre num acidente de carro — algo que apenas o espectador presencia, enquanto a namorada espera durante horas por uma confirmação da tragédia na estrada.

Quando a Luz Arrebenta (estranhíssima tradução para When the Light Breaks) é um drama intenso. O diretor e roteirista Rúnar Rúnarsson dedica a narrativa inteira ao luto de duas mulheres — a namorada oficial e a amante —, embora esta última não possa externar a sua dor, devido ao sigilo do relacionamento. A primeira recebe abraços e condolências dos amigos; a segunda precisa manter a posição de mera amiga e parceira na banda de rock. Diddi tinha acabado de prometer que terminaria o relacionamento à distância com Klara, mas não teve tempo de concretizar os planos.

Há incontáveis maneiras de representar a dor pela perda de alguém. Entretanto, os personagens deste drama apenas choram. Trata-se de uma heroína fraca em motivações e, pior do que isso, limitada ao relacionamento com um homem.

Por isso, o longa-metragem islandês-holandês-croata-francês promove dois níveis de luto possível: o público e o privado; aquele aceito socialmente, e o vergonhoso, que precisa ser mantido na clandestinidade. O ponto de vista se posiciona junto à mais sofredora das mulheres, focando-se ao máximo em seu rosto, seu sentimento de desajuste social, sua solidão. Graças ao ponto de vista seletivo e unileteral, ignoramos o nível de proximidade de Diddi com a namorada Karla, ou com os amigos próximos e familiares. Aquilo que nossa heroína desconhece, também permanece oculto ao espectador.

Sobram, em contrapartida, as lágrimas. Muitas, muitas lágrimas. Há incontáveis maneiras de representar a dor pela perda de alguém — quem se lembra da catarse na montanha-russa de O Quarto do Filho, ou a pele se espremendo num muro áspero em A Liberdade É Azul? A saudade pode despertar a libido, pode acelerar movimentos de rebeldia e indignação. Entretanto, os personagens deste drama apenas choram. O autor prefere as representações mais imediatas e literais possíveis da tristeza, que consistem em colocar os personagens abraçados, aos prantos, durante metade das cenas. Os amigos não possuem nenhuma complexidade para além do desespero profundo pela perda do artista.

O projeto acumula um sem-número de clichês do imaginário do luto enquanto tristeza — sua camada mais evidente. Os personagens ficam com o olhar perdido, contemplando o nascer do sol e o pôr do sol. Pulam numa festa, ao som de música clássica, até chorarem novamente. Viram shots e mais shots de álcool. Passeiam pela capital ao som de violinos tristes e árias religiosas. Quando a situação se torna angustiante demais, escapam do grupo de amigos para fumarem um cigarro — uma, duas, três vezes. Aqui, os personagens fazem pouco mais do que lamentar de um canto a outro, externando a dor, cena sim, outra também.

Tal disposição reforça o caráter novelesco do conjunto. Sob pretexto de capturar as emoções de Una, o roteiro se esforça para multiplicar os momentos em que a namorada oficial e a amante precisam conviver. Elas se encontram por acaso no banheiro. Elas choram no ombro uma da outra. Elas voltam para casa abraçadas. Elas deitam na mesma cama, e se admiram com tal ambiguidade que revela uma possível compreensão da infidelidade, mas não por completo. Uma ensina a outra “a voar” (uma ilusão de ótica a partir da arquitetura de uma igreja). As duas observam o horizonte no mesmo local onde, um dia antes, Diddi prometia amor infinito a Una. Existe uma perversidade em reforçar a impossibilidade, bastante óbvia em si própria, da heroína em expressar sua dor. Cutuca-se a ferida por estimar que, desta maneira, o drama seria mais intenso.

Graças à predileção pelos close-ups alternados com paisagens bucólicas (as ondas ao amanhecer, filmadas com drones, banhadas em música melancólica), Quando a Luz Arrebenta depende excessivamente da atuação de Elín Hall (ou Elín Sif Halldórsdóttir) para funcionar. Ora, a composição da jovem pode se considerada correta, porém incapaz de transmitir tamanhas contradições e sutilezas. Posto que tudo é exteriorizado, ela recebe poucas oportunidades de expressar uma variação emocional para além do choro constante. 

Trata-se de uma heroína fraca em motivações e, pior do que isso, limitada ao relacionamento com um homem. Nunca a vemos tocando na banda, nem estudando artes performáticas na universidade. Os laços com os pais são meramente evocados na cena do cachorro-quente. Os objetivos profissionais permanecem incertos. Una se limita ao posto de amante vitimada. A comparação com a novela também se estende a esta simplificação da mulher enquanto pura emoção, mera afetividade e sentimentos, ao invés de razão. 

Nem mesmo a pansexualidade assumida desperta qualquer fricção no grupo de jovens supostamente provocadores — cuja ousadia máxima consiste em andar na rua calma, ao invés de caminharem sobre a calçada. Rúnarsson pretende demonstrar solidariedade com a personagem ferida, no entanto, transparece mais prazer em representar o sofrimento do que a sofredora. Alguns cineastas se enamoram tanto do Drama, com D maiúsculo (compreendido enquanto uma somatória de mortes, amores impossíveis, segredos inconfessáveis) que se esquecem de inserir tais afetos contemporâneos numa sociedade plausível, capaz de acolhê-los.

Quando a Luz Arrebenta (2024)
4
Nota 4/10

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