Quando Eu Me Encontrar (2023)

Filmar o vazio

título original (ano)
Quando Eu Me Encontrar (2023)
país
Brasil
gênero
Drama
duração
78 minutos
direção
Amanda Pontes, Michelline Helena
elenco
Luciana Souza, David Santos, Pipa, Di Ferreira
visto em
12º Olhar de Cinema (2023)

Dayane foi embora. Assim, do nada. Certo dia, deixou uma carta no quarto, avisando que estava de partida, mas não informou o destino. Apenas pegou as roupas e partiu. O longa-metragem é movido pela dor do luto, mas não um luto qualquer, e sim aquele ligado ao desaparecimento, quando há uma esperança do retorno e da reparação das feridas. No caso da morte, lida-se com o definitivo, com a impossibilidade de voltar atrás. Há uma certeza fatual, uma concretude diante de um corpo e dos procedimentos funerários, que não encontram equivalente no caso do ente desaparecido. O sumiço funciona como um eterno parêntese.

As diretoras Amanda Pontes e Michelline Helena respeitam tanto a dor de quem fica quanto os motivos de quem vai. Por isso, evitam qualquer julgamento de moral em relação à protagonista ausente. Os motivos da fuga ficarão restritos àquela que não se encontra presente para justificar. Ao adotar rigidamente o ponto de vista das três pessoas mais próximas de Dayane (a mãe, a irmã e o namorado), permite enxergar apenas aquilo que a trinca também enxerga. Posto que se encontram indignados, sem respostas para o ocorrido, o espectador também ficará no escuro.

A jovem adulta tampouco surge em imagens. Não há fotos, flashbacks explicativos, nada que nos leve a nutrir piedade ou qualquer outro sentimento por ela. As cineastas encorajam o público a imaginar sua própria Dayane, pelos aspectos físicos e emocionais. Vemos as roupas no armário e a decoração do quarto. Conhecemos a amiga mais próxima, a tendência inconsequente a pular no mar revolto quando lhe dá vontade. Imaginaremos nossa própria garota, e suas motivações, caso desejemos. A câmera permanece junto a Marluce (Luciana Souza), Mariana (Pipa) e Antônio (David Santos), sem abandoná-los um instante sequer — até porque já se sentem desamparados o suficiente.

A direção demonstra um cuidado muito preciso na construção de uma tristeza pequena, jamais paralisante, nem espetacular.

Como única forma de voltar ao passado, Quando Eu me Encontrar oferece indícios sonoros, ou seja, fragmentos de conversas passadas com a irmã mais nova, a mãe ou o namorado, projetados sobre os rostos desolados destes no tempo presente. As interações sonoras, tanto nas interpretações musicais excelentes de Di Ferreira quanto nas cantigas acapela, resultam nos momentos mais fortes do drama. O dueto criado pela montagem, entre a mãe solitária e a filha cantarolando em algum momento do passado, atinge uma beleza profunda ao criar uma poesia puramente cinematográfica, compartilhada apenas com o espectador-cúmplice.

Ao mesmo tempo, é preciso que a vida continue. Estas pessoas de classe média-baixa de Fortaleza não podem se dar ao luxo de interromper a rotina para lamentar uma ausência. Precisam continuar indo à escola, armando a barraquinha de comida, vendendo sapatos na loja. A cabeça pode estar em outro lugar, mas o corpo se força a seguir em frente. O conflito de classes, discreto, porém certeiro, faz com que os colegas ricos de Mariana possam descansar na Disney. Ela não teria condições para tal, pois precisa tirar notas boas e preservar a bolsa de estudos. O capitalismo rouba a estes personagens o tempo, o ócio, a contemplação. 

A direção demonstra um cuidado muito preciso na construção de uma tristeza pequena, jamais paralisante, nem espetacular. Percebe-se com clareza o pesar nos olhos de cada ator, mas talvez apenas o espectador presencie todos esses momentos. Antônio sofre isolado no estoque de sapatos; Mariana encoraja a melhor amiga a superar seus próprios problemas; Marluce imediatamente retira o prato da filha fugidia da mesa, em sinal de represália — caso voltasse naquele instante mesmo, não encontraria um prato onde comer. Conforme buscam pela filha, namorada e irmã, os protagonistas desvendam outras melancolias ao redor. Ninguém possui o monopólio das dores: surge então a melhor amiga abusada sexualmente durante uma festa; a avó de Dayane, que também abandonou a filha; a melhor amiga de Dayane, cantando num bar e ocultando a resposta quanto ao destino dela.

É certo que alguns desses instantes pesam a mão na encenação. O encontro entre Marluce e sua mãe pende ao melodrama exagerado, tanto pela trilha lacrimosa quanto pelas falas engessadas, desconectadas das interações até então. Luciana Souza é uma grande atriz, imbuindo todas as suas personagens de uma integridade e uma solidez ímpares. No entanto, nem ela sustenta alguns diálogos desajeitados. Felizmente, estas cenas são raras, e não retiram o prazer de tantas conversas naturalistas, de ar despojado, repletas de vícios, gírias e hesitações comuns à linguagem oral.

Ainda que privilegiem o universo feminino, Quando Eu me Encontrar também permite compreender a dor do abandono no caso dos homens, para quem a revolta se expressa de maneira diferente: ele se torna agressivo devido à honra ferida, e passa a considerar a ex-companheira uma “rapariga” por não aceitar a “vida massa” que estava disposto a proporcionar. Ao final, as atuações estão coesas, afinadas num nível intermediário entre a empostação excessiva e a aparência de improviso. Há tanto espaço para a tristeza quanto para o humor, incluindo belas tiradas típicas do olhar cronista, atento a detalhes do cotidiano (a tampa da cerveja aberta na manga do amigo, o carro de aplicativo que nunca chega, a chave deixada sob os cuidados da vizinha ao lado). 

As diretoras conhecem bem o universo retratado, o que justifica essa poesia singela, doce, de uma empatia humanista, nunca exploradora. A produtora Marrevolto e os criadores cearenses voltam a oferecer pequenos dramas intimistas familiares, funcionando como metonímias da sociedade (há duas atrizes de A Filha do Palhaço aqui, além de um quadro de palhaço na parede de casa, em referência à obra do produtor Pedro Diógenes). Este cinema político se constrói pelos afetos, trazendo para os núcleos populares os efeitos da falta de oportunidade, do descaso do sistema, do desamor. Trata-se de um grupo melancólico de filmes, capaz de representar o todo pela parte, e a solidão de uma geração por três figuras tristes que ainda esperam, secretamente, o retorno de Dayane.

Quando Eu Me Encontrar (2023)
7
Nota 7/10

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