“A Filha do Palhaço fala sobre perdão, reconciliação”, explica o diretor Pedro Diógenes

Na 9ª edição da Mostra de Cinema de Gostoso, o grande vencedor segundo a imprensa e o público foi o drama A Filha do Palhaço (2022), dirigido por Pedro Diógenes. O cineasta vinha desenvolvendo há anos o projeto sobre o ator e humorista Renato (Démick Lopes) que se apresenta nos restaurantes e bares de Fortaleza como a personagem Silvanelly. Certo dia, recebe em casa a adolescente Joana (Lis Sutter), filha que abandonou há muitos anos, e que deseja passar uma semana com o pai distante. Apesar do estranhamento inicial, eles começam a se conhecer melhor. O encontro com Marlom (Jesuíta Barbosa), ator de teatro com quem Renato se relaciona, provoca novas faíscas na relação familiar.

Durante o evento, o Meio Amargo conversou com o cineasta a respeito do longa-metragem que representa uma iniciativa rara em sua carreira. Ele discute a proximidade com o primo Paulo Diógenes, humorista que serviu de inspiração para o protagonista, além do cuidado com a jovem atriz iniciante e sua relação com o humor cearense.

Após tantos filmes radicais e experimentais, de onde vem a busca por um cinema mais popular?

Tem muito a ver com a questão de o filme tratar do humor cearense. Isso contaminou o processo do filme, desde sempre, então veio essa vontade de comunicar, de ser mais popular. No caso de A Filha do Palhaço, não sei se posso usar muito esse termo, “filme popular”, porque não acontecem muitas coisas, não têm muitas reviravoltas. Muitas emoções ficam subentendidas, sugeridas em diálogos. Não sei se o filme é realmente popular, mas ele está contaminado por essa vontade de se comunicar de forma mais direta com o espectador.

Você faz um filme sobre humor, que não é um filme de humor…

Tinha a vontade de mostrar outro lado. Como eu venho de lá, tenho uma relação complexa com esse humor. Não é algo que eu apenas venero, ou vejo apenas qualidades. Também enxergo muitos defeitos, até pela maneira como as pessoas enxergam o cearense, pensando que todos precisam ser bem-humorados, contando piadas, e que o Ceará é a terra do humor. Isso tem uma carga não apenas positiva, porque limita a visão que as pessoas têm sobre a gente. Esse próprio humor foi ficando ultrapassado com o tempo. Ele era muito focado em piadas machistas, muitas vezes desrespeitosas com o público. Se alguém olhar a Silvanelly e não a considerar muito engraçada, não verei isso como defeito. Esse humor tem um lugar complexo. Fora os shows da Silvanelly, o filme é muito mais focado no cotidiano, na relação com a filha. Não dá para chamar de um filme de comédia. 

Equipe de A Filha do Palhaço apresenta o filme na Mostra de Cinema de Gostoso. Foto: Rogério Vital.

Como coordenar a dinâmica entre um ator experiente, como o Démick Lopes, e uma jovem iniciante?

Esse foi um dos grandes trabalhos na pré-produção, durante os ensaios. Isso também me fez ter muita certeza do Démick, desde o começo. Eu queria alguém que fosse meu parceiro, que eu conhecesse muito, e com quem tivesse intimidade. Ele precisaria ser um representante da direção em cena, por toda a sua experiência. Ele me deu muita confiança no trabalho todo, no sentido de acolher uma pessoa nova que chegaria. Durante grande parte do processo, eu não sabia que era a Lis Sutter que chegaria, em sua primeira vez fazendo um filme, mas seria uma jovem de pouca experiência. Por isso, eu precisava de alguém com experiência para viver o pai. Depois, tivemos muitos ensaios, junto da Samya de Lavor e da Elisa Porto.
O trabalho delas foi fundamental para a Lis, tanto de palco quanto de suporte psicológico e de carinho. Ela estreou neste campo fazendo um longa-metragem, com uma dedicação intensa. Ela abriu mão do seu cotidiano e da vida que levava para se dedicar dois meses a esse filme. Lis estava às vésperas de prestar o vestibular, embarcando em temas que também mexiam com ela. Ela tem um pai ausente, e teve que repensar coisas dela, ultrapassar limites, desde os físicos — a mudança de corte de cabelo, e o fato de colocar um biquíni, porque ela tinha questões com o próprio corpo. Ela também precisou cantar, algo que não está acostumada a fazer. Foram vários limites a ultrapassar, vários lugares diferentes. A gente que faz filme há muito tempo sabia dessa dificuldade. Quando acaba um set, vem toda uma ressaca porque tanta energia é investida naquilo, no cotidiano. Tivemos um cuidado muito grande com ela. 

Como enxerga o papel do Marlom, interpretado pelo Jesuíta Barbosa, nessa dinâmica familiar?

Ele é o cara que, sem querer, transforma a relação de pai e filha, para aproximar os dois. É um elemento externo à relação dos dois, mas que afeta muito. Marlom está no meio-termo, inclusive de idade. Ele tem uma profissão semelhante àquela do Renato, mas também é um jovem próximo da filha. Poderia ser um amigo da filha, ou do pai. Ele ocupa este meio de campo, e tem o papel importante de resgatar no Renato tanto o respeito pela profissão dele quanto o respeito pelo trabalho como ator de teatro. Marlom ainda resgata a possibilidade de uma nova relação amorosa. No filme, desde que o Renato perdeu o companheiro, ficou mais recluso, sem se relacionar com ninguém há dois anos. Então ele permite resgatar tanto o amor pela atuação quanto a paixão. É através do Marlom que a filha aceita melhor o fato de o pai se apaixonar por outro homem.

Renato é um personagem complexo pelo histórico de abandono da filha. Parece desafiador o convite ao público para se identificar com ele, e torcer por ele.

Para mim, o papel da mãe é fundamental nisso. Ela joga a real nessa relação entre pai e filha: uma semana de compartilhamento e diversão não significa nada dentro de uma relação de paternidade. Quando a filha explode, ela diz muitas coisas a esse pai. Essa sempre foi uma questão para nós: como podemos curtir a relação entre os dois, sem necessariamente acabar o filme achando que Renato é um herói? A heroína do filme é a mãe, por mais que apareça durante pouco tempo. Foi ela quem segurou a barra de criar um ser humano, algo muito difícil. Ela ainda teve a dignidade de levar a garota para ver o último show de humor do pai, para ela ter uma despedida. A mãe é superior a todo isso, sem rancor. Ela joga verdades ao Renato, mas já superou isso tudo. O filme também fala sobre perdão, reconciliação. Parte deste processo é desculpar. Ele errou muito — e para mim, que sou pai, abandonar alguém é um erro imenso. Mas ele teve uma nova chance, e quem vai em busca disso é a filha. Conheço muitos casos em que acaba sendo confortável para o pai essa distância, e quanto mais distante, melhor vai ser, e menos ele vai querer se relacionar. Por isso era importante que a iniciativa viesse da filha.

Você adota um estilo clássico, com os atores posicionados nos terços exatos do enquadramento, além de poucos movimentos de câmera. Como escolheu isso?

Em termos de fotografia, nossa intenção sempre foi estar muito perto dos atores. A gente achava que o foco precisaria ser esse. Os diálogos mais importantes ocorrem em planos-sequências fixos, sem montagem, com os atores atuando. Tem um pouco a ver com o Inferninho, porque eu já fiz muitos filmes, mas cada um tem um processo diferente. Mas nesses dois filmes, Inferninho e A Filha do Palhaço, consegui ter mais tempo para me dedicar aos atores. Fizemos muitos ensaios, e então fico com muita vontade de privilegiar o trabalho deles. Como espectador, eu quero estar perto desses personagens. Por isso, apostamos nessa linguagem que não tem muito movimento de câmera, focado em estar perto dos atores e de suas emoções. Mas cada filme pede algo diferente durante o processo. Nunca, nos meus filmes, a linguagem veio antes do processo. Ela vai sendo descoberta coletivamente com o diretor de fotografia, o diretor de arte, os atores, os espaços.
Não sei a pandemia influenciou também. Se não tivesse a pandemia, talvez o filme ganhasse um aspecto mais documental. Talvez eu tivesse a vontade de filmar um show real de humor. Cenas no centro de Fortaleza poderiam ter mais pessoas. Mas filmamos durante a pandemia, e precisamos pensar na linguagem que coubesse num registro mais fechado. A gente não queria que a história se passasse na pandemia, que isso se transformasse em tema. Então não teria ninguém de máscara aparecendo em quadro, mesmo que todas as pessoas fora do filme estivessem de máscara. Isso ajudou a ter essa linguagem mais fechada, mais próxima dos atores.

O projeto nasceu há mais de sete anos, e desde então, o país mudou muito — o que inclui nossa relação com o humor, com as minorias e diferenças. O texto precisou ser atualizado para se adequar ao Brasil atual?

É muito doido. Filmes com processos longos atravessam períodos muito diferentes, e é impossível não ser contaminado por eles, tanto na prática, em questões de produção, quanto no discurso. O que representa melhor isso é a questão da mãe. Nos primeiros tratamentos do roteiro, muitos anos atrás, talvez ela fosse uma vilã da história. Isso mudou muito. Fomos trabalhando o filme e percebemos que ela não poderia ser uma vilã, pelo contrário, ela era a heroína. Isso tem a ver com o título do filme. O termo “palhaço” pode ter o sentido que quiserem ler dele: pelo humor, pela palhaçaria, mas também o palhaço como pejorativo, enquanto xingamento, por ter abandonado a filha por tanto tempo. 

Também existe o palhaço triste da ópera, que precisa fazer as pessoas rirem, enquanto ele próprio está triste.

Isso tem a ver com minha relação com o Paulo Diógenes, e a Raimundinha. Durante muito tempo, ele era uma figura muito contraditória: nos palcos, fazia humor, mas fora do palco, era um adicto, viciado em cocaína. Ele teve um apartamento com apenas dois móveis, o sofá e o telefone, porque vendeu todo o resto. Chegou a se apresentar nas pizzarias, e lá fora estava estacionado o traficante, esperando para receber o dinheiro daquele show. Ele me contou que, num show, quando viu os traficantes chegando, abandonou o palco, subiu na moto do cara e saiu. O pessoal riu na hora, achou que fosse piada, mas ele não voltou para se apresentar naquela noite. Para mim, ele representava o exagero disso: a alegria nos palcos, mas fora disso, está lascado, lutando contra o vício.
O roteiro foi se transformando neste sentido também: esse aspecto estaria presente no filme, mas com o passar do tempo, a gente foi vendo que esse tema precisaria de um tratamento mais detalhado e sério, ou então, seria melhor tirar por completo. Era preciso abordar a questão com muito carinho. Mas o filme não era esse, então abandonamos essa questão que o personagem chegou a ter. Esses personagens que se caracterizam são marcados por isso, porque eles vestem uma persona. É diferente do stand-up, quando a pessoa representa a si mesma. Esses humoristas precisaram se atualizar. Antes, pegavam muito pesado, e depois, foram alterando o tipo de humor. Essas pessoas sofreram com a chegada do stand-up a este espaço. O humor cearense ainda tem muitos outros filmes para ser feitos.

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