O primeiro grande mérito deste documentário sobre os cuidados com a Covid-19 se encontra no fato de não explicar a Covid-19. Em 2021, alguns filmes brasileiros que circularam por festivais tomaram seus espectadores por amnésicos, tratando de resumir quando surgiu a pandemia, de que maneira se espalhou, as mortes que provocou, a reação tardia e inapropriada do governo federal brasileiro, a chegada de vacinas, etc. Ora, Quando Falta o Ar (2022) parte do pressuposto justo que seus espectadores já conhecem muito bem estas etapas.
Por isso, as diretoras Ana Petta e Helena Petta dispensam a presença de narradores, especialistas, jornalistas e estatísticos. Interessa à dupla um retrato humano deste processo, focado sobretudo naqueles indivíduos cujo trabalho foi pouco destacado nos noticiários: as agentes de saúde que percorreram vilarejos isolados, comunidades ribeirinhas e indígenas, ou que atuaram no interior dos presídios. As cineastas possuem a consciência de que a doença teve um forte componente de classe e raça, chamando atenção, silenciosamente, à disparidade do tratamento dispensado a distintos grupos sociais.
Este seria o segundo mérito notável da abordagem: a crença na inteligência do espectador, a quem se oferece sequências desprovidas de diálogos ou ensimentos. A câmera se cola às agentes, principalmente mulheres, em seus deslocamentos pelas cidades interioranas. O espectador descobre o processo para se paramentarem e desinfectarem, além do auxílio psicológico fundamental prestado aos habitantes locais. Há mais a curar do que um vírus, sugere o filme. A solidão e a desinformação se tornam fenômenos igualmente perigosos.
Felizmente, a direção de fotografia demonstra preciosa atenção aos detalhes. Ao invés de revelar somente os aspectos fatuais do trabalho sanitário, o projeto busca estas minúsculas poesias do dia a dia, a exemplo da enfermeira tirando uma selfie com a árvore de Natal, uma tatuagem escrita “Mãe”, e os pés de um rapaz negro internado, comparado pela montagem com os pés retorcidos de Cristo crucificado. A delicadeza se encontra nestas composições de linguagem, em oposição à atenuação do tema para torná-lo palatável ao público médio.
Este não é um discurso nem de lamentação da Covid, nem de constatação da doença, e sim de reflexão a partir dela.
Pelo contrário, as irmãs Petta testemunham a paciente com dificuldade de respirar, outro sendo reanimado ao vivo pelos médicos na UTI, e mesmo o preparo especial do cadáver de um homem falecido por Covid-19. A câmera flagra longamente os cuidados com o corpo para evitar infecções. Teria sido fácil recorrer ao melodrama, aos choros de familiares, ao esgotamento mental das trabalhadoras. Ora, o documentário evita a estratégia moralizante de conscientização pelos sentimentos. Mesmo a morte recebe um tratamento glacial, desprovido de julgamentos ou piedades.
Isso não implica em descaso pelos indivíduos filmados, apenas numa forma de pudor e respeito à privacidade alheia. A câmera se posiciona no corredor para registrar pessoas na UTI, através da porta de vidro, sem invadir o espaço médico. No caso do sujeito falecido, o enquadramento retira seu rosto da imagem. Várias pessoas terão as identidades borradas, possivelmente por não terem autorizado a participação no projeto. Existe um limite ético que as diretoras não estão dispostas a cruzar, relacionado à exploração da miséria. Este não é um discurso nem de lamentação da Covid, nem de constatação da doença, e sim de reflexão a partir dela.
Em contraste com um olhar tão clínico — em vários sentidos do termo —, Quando Falta o Ar introduz uma trilha sonora politizada para questionar a maneira como as pessoas negras, encarceradas e marginalizadas em geral sofrem com o descaso do governo. Strange Fruit, canção incendiária de Billie Holiday, compõe a trilha sonora junto a trechos de Racionais Mc’s. Neste momento, a mixagem opta pelo som das músicas em volume alto até demais, de maneira a perturbar, a chamar atenção. As diretoras não desejam que as letras e o potencial perturbador das canções passe despercebido.
Enquanto isso, o roteiro foge à tentação de instrumentalizar o discurso num mero ataque ao presidente Jair Bolsonaro e seus ministros. É claro que o olhar das cineastas se posiciona contra o descaso desta liderança, inserindo diálogos discretos que mencionam, sem citar, tanto Bolsonaro quanto as falsas soluções aportadas via cloroquina, ivermectina e outros remédios que se provaram ineficazes no combate à crise. O gesto político da dupla se encontra no olhar humanizado, na abertura ao outro, no tratamento democrático e igualitário entre médicos, enfermeiros, técnicos de limpeza e pacientes. Em pleno ano eleitoral, evita-se converter a obra artística em simples grito contra uma gestão negligente.
Por fim, o documentário constitui um dos primeiros grandes filmes a respeito da Covid-19 realizados pelo cinema brasileiro, após algumas tentativas apressadas, muito escolares ou passionais no ano anterior. Faltava aos antecessores o mínimo distanciamento para reflexão, algo que este documentário proporciona ao espectador graças a uma montagem contemplativa, mas também ágil e fluida. O espectador é finalmente convidado a tomar uma postura ativa diante das imagens, ao invés de se restringir ao receptor de um conhecimento pré-mastigado pelas autoras. Ana Petta e Helena Petta compreendem que sua função face à crise seria de ordem artística e estética, ao invés de informativa. Que as escolas, os jornalistas e as propagandas institucionais se encarreguem desta função.