No início da década de 1990, a Iugoslávia deixou de existir enquanto tal. Tornou-se uma nação desmembrada, e batizada, nesta ficção, de X. Em 1992, Lana recebe um telefonema em casa, anunciando a morte do avô. Cabe a ela transmitir a mensagem à mãe ausente, mesmo que garota de onze anos de idade não tenha ideia dos protocolos a adotar. Compreende, no entanto, que uma catástrofe acaba de acontecer. “Na sua cabeça de menina, foi aquela ligação que começou a guerra”, afirma a narradora em off. Tanto a vida familiar quanto o andamento do mundo como o conhece se transformam a partir deste momento. Seu núcleo próximo também se dissolve, e algumas partes desaparecem aos seus olhos.
A diretora parte desta metáfora singela e poderosa em Quando o Telefone Tocou. A frase retorna uma dezena de vezes, com leves alterações: “Quando o telefone tocou, às 10h26, era sexta-feira”. “Quando o telefone tocou, este país ainda existia”. Iva Radivojević associa o trauma pessoal ao trauma coletivo, e o dilema de uma garota em fase de amadurecimento àquele de um país esfacelado. A incompreensão da menina quanto ao futuro de seus parentes equivale, de certo modo, ao desconhecimento de cada habitante a respeito do território correspondente — onde se encontram, hoje, Bósnia e Herzegovina, Croácia, Macedônia do Norte, Montenegro, Sérvia e Eslovênia.
O luto pelo fim da Iugoslávia encontra-se com o luto pelo avô. A garota se torna porta-voz de uma nação, testemunha de sua época.
Logo, o ponto de vista infantil corresponde ao olhar de inocência e ingenuidade suposto aos habitantes (e à própria cineasta, nascida na região) diante da revolução macropolítica. Lana não chora, não se rebela, nem cobra explicações a quem quer que seja. A menina tímida, menos extrovertida do que a irmã mais velha, apenas emudece. Vai ao cabeleireiro, faz um novo corte de cabelo, assiste a clipes de suas músicas favoritas com o vizinho mais velho, passeia pelas ruas. A vida se torna suspensa: não há obrigações em relação à escola, à religião, muito menos aos adultos.
A este propósito, os pais e responsáveis são retirados da trama. Serão brevemente vistos de costas, até sumirem por complexo — uma nação desprovida de delimitações seria como uma criança sem supervisão? A pequena heroína transita então por ruas e cais vazios, além de prédios silenciosos, onde não aparenta haver vizinhos. Ela fala pouco, e interage menos ainda. Os amigos de sua idade compartilham seus silêncios, conformando-se coletivamente em certa consternação pacífica — menos um conformismo do que uma paralisia. A montagem retorna incontáveis vezes ao relógio parado no fatídico momento da ligação sobre o avô. O mundo congela para a garota que, no entanto, continua a desempenhar tarefas. Ela o faz sem real desejo, somente para passar o tempo — este tempo que não passa jamais.
Radivojević busca elementos estéticos capazes de transmitir uma impressão de doce claustrofobia. Ela adota a janela em formato próximo do quadrado, para limitar a percepção do espaço e valorizar os rostos. Mesmo assim, prioriza a composição do elenco de perfil, ao invés de frontalmente encarando a câmera (vide a imagem em destaque acima), ou ainda por um prisma distanciado, como se fosse filmado às escondidas (caso de Lana e o vizinho dançando ao som de suas músicas favoritas, vistos através da janela do apartamento). A câmera nem participa dos movimentos junto aos personagens, de maneira cúmplice, nem os espia de maneira com qualquer senso de imprevisto, devido às composições cuidadosamente elaboradas.
Assim, preserva o mistério tanto dos acontecimentos quanto da psicologia dos personagens, que nos permanece inacessível. Nunca sabemos o que desejam, nem o que farão a seguir. As atuações são calibradas para a mínima expressividade possível, deixando que a estranheza dos ambientes e da estética (as cores saturadas, as luzes contrastadas, a artificialidade deste formato de tela, chamando atenção para si próprio) representem um universo deslocado, ao limite do realismo fantástico. De fato, Quando o Telefone Trocou transparece uma atmosfera pós-apocalíptica, quando os zumbis ou infectados já tivessem passado, deixando uma terra arrasada. “A atmosfera era de uma estranheza disfarçada”, explica a narradora em off — um expressivo trabalho vocal de Slavica Bajceta.
Em contrapartida, evita-se a mera lamentação do trauma. Isso porque o ponto de vista desta narradora-guia se posiciona num futuro indefinido — “agora, anos depois”, em suas palavras. Sabe-se, portanto, que as coisas se ajeitarão no futuro, e as nações repartidas partirão com suas próprias pernas, A menina se tornará adulta, capaz de refletir acerca do que lhe aconteceu com o devido senso crítico, misturado ao tom de acolhimento. A autora ainda reserva algumas cenas de raro impacto emocional para romperem com a linearidade da experiência — caso da declaração de amor entre duas meninas, representadas pelo som ausente, e foco num olho lacrimejando para nos indicar a importância das palavras trocadas (imagem abaixo). O conteúdo da confissão pode ser completado pelo imaginário afetivo de cada espectador.
O resultado soa tímido a princípio, talvez excessivamente contido em sua recusa de expandir o ponto de vista ou buscar metáforas de maior impacto para os acontecimentos. No entanto, percebe-se sua construção enquanto low burner, ou seja, o filme que cresce aos poucos, microscopicamente, cena após cena. A cineasta confia tanto em seu dispositivo que não efetua nenhuma concessão ao gosto médio, nem abraça facilitadores de roteiro. Prefere a melodia delicada de uma caixinha de música, somada à confissão misteriosa e ao desaparecimento silencioso das autoridades.
É possível que o resultado reverbere durante algum tempo junto ao espectador após a sessão. Isso se deve ao fato que as dúvidas, os sentimentos e as emoções desta jornada permanecem voluntariamente embaralhados, entre temor pelo futuro e monotonia do presente, entre o prazer de crescer e o medo de nada encontrar, uma vez crescida. O luto pelo fim da Iugoslávia encontra-se com o luto pelo avô, e pelo luto de alguns gatos mortos na rua. Desenha-se uma desolação ampla, indistinta, espelhando metonimicamente os tormentos da garota em todas as outras pessoas que supomos existir. Ela se torna porta-voz de uma nação, testemunha de sua época. Quer melhor forma de homenageá-la do que permitir fazer o que quiser, em meio a um país deixado em suas mãos, tal qual um objeto precioso esquecido pelos pais durante a fuga?