Quando o Telefone Tocou (2024)

País fantasma

título original (ano)
Kada je Zazvonio Telefon (2024)
país
Sérvia, EUA
gênero
Drama
duração
73 minutos
direção
Iva Radivojević
elenco
Natalija Ilinčić, Srna Vasić, Danica Maksimović, Anton Augustinov, Slavica Bajceta, Danica Maksimovic
visto em
14º Olhar de Cinema (2025)

No início da década de 1990, a Iugoslávia deixou de existir enquanto tal. Tornou-se uma nação desmembrada, e batizada, nesta ficção, de X. Em 1992, Lana recebe um telefonema em casa, anunciando a morte do avô. Cabe a ela transmitir a mensagem à mãe ausente, mesmo que garota de onze anos de idade não tenha ideia dos protocolos a adotar. Compreende, no entanto, que uma catástrofe acaba de acontecer. “Na sua cabeça de menina, foi aquela ligação que começou a guerra”, afirma a narradora em off. Tanto a vida familiar quanto o andamento do mundo como o conhece se transformam a partir deste momento. Seu núcleo próximo também se dissolve, e algumas partes desaparecem aos seus olhos.

A diretora parte desta metáfora singela e poderosa em Quando o Telefone Tocou. A frase retorna uma dezena de vezes, com leves alterações: “Quando o telefone tocou, às 10h26, era sexta-feira”. “Quando o telefone tocou, este país ainda existia”. Iva Radivojević associa o trauma pessoal ao trauma coletivo, e o dilema de uma garota em fase de amadurecimento àquele de um país esfacelado. A incompreensão da menina quanto ao futuro de seus parentes equivale, de certo modo, ao desconhecimento de cada habitante a respeito do território correspondente — onde se encontram, hoje, Bósnia e Herzegovina, Croácia, Macedônia do Norte, Montenegro, Sérvia e Eslovênia.

O luto pelo fim da Iugoslávia encontra-se com o luto pelo avô. A garota se torna porta-voz de uma nação, testemunha de sua época.

Logo, o ponto de vista infantil corresponde ao olhar de inocência e ingenuidade suposto aos habitantes (e à própria cineasta, nascida na região) diante da revolução macropolítica. Lana não chora, não se rebela, nem cobra explicações a quem quer que seja. A menina tímida, menos extrovertida do que a irmã mais velha, apenas emudece. Vai ao cabeleireiro, faz um novo corte de cabelo, assiste a clipes de suas músicas favoritas com o vizinho mais velho, passeia pelas ruas. A vida se torna suspensa: não há obrigações em relação à escola, à religião, muito menos aos adultos.

A este propósito, os pais e responsáveis são retirados da trama. Serão brevemente vistos de costas, até sumirem por complexo — uma nação desprovida de delimitações seria como uma criança sem supervisão? A pequena heroína transita então por ruas e cais vazios, além de prédios silenciosos, onde não aparenta haver vizinhos. Ela fala pouco, e interage menos ainda. Os amigos de sua idade compartilham seus silêncios, conformando-se coletivamente em certa consternação pacífica — menos um conformismo do que uma paralisia. A montagem retorna incontáveis vezes ao relógio parado no fatídico momento da ligação sobre o avô. O mundo congela para a garota que, no entanto, continua a desempenhar tarefas. Ela o faz sem real desejo, somente para passar o tempo — este tempo que não passa jamais.

Radivojević busca elementos estéticos capazes de transmitir uma impressão de doce claustrofobia. Ela adota a janela em formato próximo do quadrado, para limitar a percepção do espaço e valorizar os rostos. Mesmo assim, prioriza a composição do elenco de perfil, ao invés de frontalmente encarando a câmera (vide a imagem em destaque acima), ou ainda por um prisma distanciado, como se fosse filmado às escondidas (caso de Lana e o vizinho dançando ao som de suas músicas favoritas, vistos através da janela do apartamento). A câmera nem participa dos movimentos junto aos personagens, de maneira cúmplice, nem os espia de maneira com qualquer senso de imprevisto, devido às composições cuidadosamente elaboradas. 

Assim, preserva o mistério tanto dos acontecimentos quanto da psicologia dos personagens, que nos permanece inacessível. Nunca sabemos o que desejam, nem o que farão a seguir. As atuações são calibradas para a mínima expressividade possível, deixando que a estranheza dos ambientes e da estética (as cores saturadas, as luzes contrastadas, a artificialidade deste formato de tela, chamando atenção para si próprio) representem um universo deslocado, ao limite do realismo fantástico. De fato, Quando o Telefone Trocou transparece uma atmosfera pós-apocalíptica, quando os zumbis ou infectados já tivessem passado, deixando uma terra arrasada. “A atmosfera era de uma estranheza disfarçada”, explica a narradora em off — um expressivo trabalho vocal de Slavica Bajceta.

Em contrapartida, evita-se a mera lamentação do trauma. Isso porque o ponto de vista desta narradora-guia se posiciona num futuro indefinido — “agora, anos depois”, em suas palavras. Sabe-se, portanto, que as coisas se ajeitarão no futuro, e as nações repartidas partirão com suas próprias pernas, A menina se tornará adulta, capaz de refletir acerca do que lhe aconteceu com o devido senso crítico, misturado ao tom de acolhimento. A autora ainda reserva algumas cenas de raro impacto emocional para romperem com a linearidade da experiência — caso da declaração de amor entre duas meninas, representadas pelo som ausente, e foco num olho lacrimejando para nos indicar a importância das palavras trocadas (imagem abaixo). O conteúdo da confissão pode ser completado pelo imaginário afetivo de cada espectador.

O resultado soa tímido a princípio, talvez excessivamente contido em sua recusa de expandir o ponto de vista ou buscar metáforas de maior impacto para os acontecimentos. No entanto, percebe-se sua construção enquanto low burner, ou seja, o filme que cresce aos poucos, microscopicamente, cena após cena. A cineasta confia tanto em seu dispositivo que não efetua nenhuma concessão ao gosto médio, nem abraça facilitadores de roteiro. Prefere a melodia delicada de uma caixinha de música, somada à confissão misteriosa e ao desaparecimento silencioso das autoridades. 

É possível que o resultado reverbere durante algum tempo junto ao espectador após a sessão. Isso se deve ao fato que as dúvidas, os sentimentos e as emoções desta jornada permanecem voluntariamente embaralhados, entre temor pelo futuro e monotonia do presente, entre o prazer de crescer e o medo de nada encontrar, uma vez crescida. O luto pelo fim da Iugoslávia encontra-se com o luto pelo avô, e pelo luto de alguns gatos mortos na rua. Desenha-se uma desolação ampla, indistinta, espelhando metonimicamente os tormentos da garota em todas as outras pessoas que supomos existir. Ela se torna porta-voz de uma nação, testemunha de sua época. Quer melhor forma de homenageá-la do que permitir fazer o que quiser, em meio a um país deixado em suas mãos, tal qual um objeto precioso esquecido pelos pais durante a fuga?

Quando o Telefone Tocou (2024)
7
Nota 7/10

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