A premissa é fascinante. Riss, cartunista do jornal francês Charlie Hebdo, viaja a Jerusalém e outros lugares fundamentais às três maiores religiões do mundo: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Ele se encontra com líderes destas crenças para questioná-los a respeito da liberdade de expressão, das fronteiras do humor, da possibilidade de representar Deus em imagens, além da intolerância e do espaço à dúvida sobre a fé. Ele parte de um princípio da escuta empática.
O dispositivo se torna particularmente interessante em virtude do histórico desta publicação francesa, conhecida por veicular charges de cunho moral e religioso, satirizando deuses e profetas. A empresa foi alvo de atentados na França, que culminaram em editores assassinados e feridos após a publicação de charges de Maomé. O documentário explica rapidamente, nos minutos iniciais, o histórico dos crimes cometidos contra o veículo, situando-o na crescente violência de ordem religiosa em nações democráticas da Europa.
Logo, o confronto promete ser tão sulfuroso quanto o conteúdo promovido semanalmente pelos editores. No entanto, o tom surpreende. Trata-se de uma abordagem pudica e moderada, mesmo temerosa: Riss lança perguntas amplas (“O conceito de blasfêmia ainda faz sentido?”, “Qual a possibilidade de representar Deus?”), e deixa que os entrevistados respondam o que quiserem, com pouca ou nenhuma contestação a respeito de suas falas. Escuta-se o rabino, o imã, o padre, o teólogo, o bispo. E encerra-se o capítulo.
Tamanha aura de neutralidade e cordialidade é a última coisa que se esperaria de um representante da Charlie Hebdo. Para complicar a situação, em termos estéticos, Que Deus Esteja com Eles demonstra interesse nulo pela linguagem do cinema.
Ora, estes segmentos (uma dezena de minutos por tema, no máximo) não chegam nem perto de ultrapassar a superfície dos temas gigantescos, complexos e filosóficos. Eles nem mesmo constituem um diálogo, posto que os dois lados raramente rebatem argumentos alheios, com uma ou duas exceções. O cineasta-narrador-entrevistador limita-se à posição de repórter, estimulando falas livres e de pouco direcionamento. Diante dos discursos a respeito da democracia, da liberdade e da fé, ele acena e consente. Corta-se então a imagem, e que venha o próximo testemunho.
Ora, o autor acaba devorado pela fragilidade de seu dispositivo. O cineasta é certamente muito inteligente, e possui conhecimentos consideráveis sobre os temas. Riss se interessa de fato pelas religiões e suas contradições, algo evidente em cada conversa. No entanto, ele não se prepara o suficiente para questionar figuras escoladas em uma retórica sólida, desenvolvida ao longo de séculos. Além disso, os convidados mostram-se acostumadíssimos a este tipo de interação, meio espinhosa, meio acanhada. Oferecem uma “versão oficial” de cada doutrina, bem diferente daquela que seus praticantes talvez respondessem, caso tivessem sido escutados.
Os líderes retorquem, com impressionante facilidade, que o islamismo defende a democracia, embora o conceito de democracia para nações muçulmanas seja distinto daquele presente em sociedades cristãs; ou que o judaísmo constitui uma religião perfeita (pois vem de Deus), ainda que seus praticantes não o sejam. A vivência do judaísmo representaria a tentativa de chegar ao mais perto de tamanha perfeição. “Veja bem”, “Não necessariamente”, “Depende do ponto de vista”. Ponderam, às vezes desviam, e muitas vezes recontextualizam, como homens inteligentes que são. O cineasta consente, sorri. Fim da cena.
Para complicar a situação, em termos estéticos, Que Deus Esteja com Eles demonstra interesse nulo pela linguagem do cinema. As entrevistas se resolvem em planos e contraplanos básicos, com luz natural, som deficiente (prejudicado por ruídos e intromissões) e movimentos de câmera vacilantes. A direção de fotografia nunca se mostra apta a captar imprevistos, ou a se adequar ao tom de urgência. Ela sabe o que pretende dizer, mas jamais de qual maneira pretende mostrar. Em outras palavras, as imagens se tornam secundárias, meros suportes para rechear o tempo das falas, que dominam a experiência durante a integralidade da trama. O som poderia ser completamente destacado e utilizado em algum podcast, sem prejuízo real às interações.
Isso porque é evidente que, para o cineasta, o interesse se encontra no tema político e religioso das falas — logo, no conteúdo, jamais nas formas. É triste nos deparar com um filme sem pretensões artísticas, nem interesse em pesquisar a linguagem encarregada de transmitir tais discussões. Bliss abraça o formato mais convencional da reportagem jornalística, adotando inclusive um verniz de imparcialidade (afinal, ele escuta todos os lados, sem apresentar contra-argumentos a nenhum deles), esperado do tratamento das informações pela imprensa.
Ora, tamanha aura de neutralidade e cordialidade é a última coisa que se esperaria de um representante da Charlie Hebdo, face aos representantes das religiões tantas vezes criticadas, causticamente, por seus membros. A máxima picardia do diretor consiste em escrever, num papelzinho, “Leia o Charlie Hebdo todas as quartas-feiras”, e inserir o recadinho dobrado num muro religioso. É interessante enquanto piscadela simbólica (compartilhada somente com o espectador), porém nulo enquanto reflexão, provocação ou forma de poesia.
O gesto resume a impotência desta iniciativa tão benevolente quanto ingênua. Não basta apenas abrir câmera, ligar o microfone, escutar o que tenham a dizer. Seria preciso provocar faíscas, seja via montagem, seja através de discordâncias em portas-vozes de uma mesma crença. O que ocorre quando tais conceitos filosóficos amplos e abstratos se confrontam ao terrorismo, aos assassinatos no Charlie Hebdo, às mudanças editoriais de revistas em decorrência da pressão religiosa? O documentário se descola perigosamente do real, da sociedade e da política. Pode ser considerado um rebranding, ou uma tentativa de atribuir ao jornal um viés de conciliação polida que o veículo nunca possuiu, nem buscou conquistar — até agora, pelo menos.