Em primeiro lugar, este longa-metragem defende uma proposta metonímica de compreensão do governo Bolsonaro. Os diretores Dellani Lima, Ricardo Alves Jr. e Henrique Zanoni se concentram especialmente em artistas cujos trabalhos foram censurados e perseguidos nos últimos quatro anos. Em todos estes casos, a exposição do corpo de maneira descomplexada, ou as representações da pluralidade sexual e de gênero despertaram a ira do presidente e dos deputados ultraconservadores.
Desenvolvido ao longo de vários anos, o documentário acompanha de perto cinco casos enquanto menciona outros de teor semelhante. Wagner Schwartz, o artista cuja performance foi censurada pela presença de crianças próxima ao corpo nu, converte-se em caso central para a argumentação. Na apresentação, ele deixava o corpo exposto, permitindo aos frequentadores dobrar suas pernas, braços, e promover uma interação fluida com o corpo-obra. Não havia, é claro, nenhum teor erótico, sexual nem libidinoso nestes encontros públicos. Ao longo de anos, em vários países, as pessoas se limitaram flexionar membros, ou a abraçar o artista.
Até o dia em que uma criança tocou nos pés do homem nu. A mãe registrou o caso, enxergando beleza neste gesto. No entanto, para pastores e asseclas do bolsonarismo, trata-se de um caso de pedofilia, perversão, zoofilia. Aos berros, exigiram na Câmara que o sujeito fosse preso, espancado, morto, condenado, etc. Outros casos se sucedem na narrativa, em circunstâncias comparáveis. Pastores gritam contra espetáculos aos quais nunca assistiram, mas que parecem lhes ferir profundamente.
O longa-metragem adota uma estrutura simples. Em sua curtíssima duração, alterna o carinho das apresentações e o teor ponderado, reflexivo dos artistas, com os acessos de fúria de religiosos eleitos, agitando Bíblias e exalando ódio em nome do amor a Deus. Wagner, a atriz Renata Carvalho, de O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, e José Neto Barbosa, de A Mulher Monstro, relembram as ameaças, proibições e pedradas sofridas, com um misto de orgulho, resiliência e tristeza.
Lima, Alves Jr. e Zanoni promovem um olhar dialético, descrevendo de maneira eficaz sua tese e sua antítese. No entanto, recusam-se a construir a síntese.
Em diversos instantes, Quem Tem Medo? se assemelha a uma obra terapêutica, espécie de arte contemporânea brasileira colocada no divã. Schwartz fica perto das lágrimas, Barbosa se emociona ao lembrar o pavor de entrar em cena. Carvalho redobra seu investimento político a partir dos ataques sofridos. Nenhum deles saiu indiferente destes episódios, pelo contrário, e o filme serve como oportunidade de exorcizar temas silenciados pela simples passagem do tempo. O cinema volta a cutucar feridas mal cicatrizadas.
Por isso, neste aspecto, há uma solidariedade e uma empatia valiosas em relação aos artistas. É óbvio que o trio de cineastas se posiciona junto aos criadores, sem precisar promover qualquer caricatura dos censores e difamadores. Pelo contrário, a montagem se esforça em reproduzir falas na íntegra, para que o espectador contemple, em texto e contextualização precisas, o caráter destrutivo das pregações contrárias à arte nacional. O esforço construtivo (pelo desenvolvimento de novas obras) se contrapõe ao esforço destrutivo (o pedido de banimentos, fechamentos e punições). Ação e reação, literalmente.
Vários aspectos de grande interesse poderiam ser retirados desta luta de boxe entre arte e religião, entre democracia e autoritarismo, entre modernidade e tradição. Em primeiro lugar, ela relança um questionamento fundamental a respeito da definição da arte. A resposta de diversos deputados aos espetáculos controversos incorre em falas como “O que tem de arte nisso?”, ou “Isso é obra de arte?”. Sujeitos que nunca apreciaram os projetos artísticos atribuem a si próprios, de repente, a capacidade de determinar o que é arte e o que não é. A ignorância religiosa sempre se acompanha de uma surpreendente dose de arrogância e autoconfiança.
Em segundo lugar, questionam-se as noções de curadoria, censura e liberdade de expressão. Ricardo Alvim, ex-secretário de cultura de Bolsonaro, dotado de uma paixão desmesurada pela estética nazista, sugere que os atos de censura promovidos pelo governo seriam mera “curadoria”. Obviamente, nunca coube aos presidentes e seus representantes efetuarem tal curadoria, especialmente posterior à criação, a partir de critérios ideológicos, no interior de um país laico. Entretanto, à revelia, pela explicitação quase caricatural do cinismo e da hipocrisia, estas falas servem a reposicionar os princípios básicos de uma sociedade de direito, baseada em regras constitucionais.
No entanto, estas considerações terão que partir do próprio espectador, visto que o documentário se recusa a dar um passo além. Trata-se de uma obra interrompida, de aparência inacabada, ou talvez terminada às pressas. Lima, Alves Jr. e Zanoni promovem um olhar dialético, descrevendo de maneira eficaz sua tese e sua antítese. No entanto, recusam-se a construir a síntese responsável pela reflexão autoral, e partir dos materiais captados.
Dada a duração de 71 minutos — o mínimo necessário, segundo uma padronização comum, para ser considerado um longa-metragem —, o documentário desperta a impressão de ter sabotado o importante terço final, quando os criadores elaborariam seu próprio discurso a partir do que constataram. Qual é o mínimo de intervenção para um caso ser considerado censura? Os números alarmantes apresentados no final constituem um aumento em relação aos episódios de censura em governos anteriores? Os artistas puderam se mobilizar de alguma maneira? Que resposta coletiva surgiu dos coletivos progressistas, dos eleitos de esquerda, para além da voz de Jean Wyllys?
As indagações vão além: em que medida as proibições refletem a homofobia e transfobia do Estado? Como refletem uma cultura mais ampla da violência e da retaliação contra as diferenças? De que maneira o cinema foi igualmente censurado neste período? Um longa-metragem a respeito de peças e espetáculos controversos precisa possuir, em si mesmo, uma estética sulfurosa, de provocação? Ora, nada disso é esquematizado, nem problematizado, pela perspectiva dos diretores. No final, Quem Tem Medo? promove um olhar introdutório à autocracia bolsonarista. No entanto, chegando aos cinemas no fim do governo Bolsonaro (pelo menos, assim se espera), ainda precisamos de uma introdução ao que ele e seus soldados são capazes de fazer?
Talvez a sociedade, os espectadores e os artistas se encontrem numa fase posterior àquela de perceber e descrever a existência de um problema. O público suscetível a assistir ao filme possui plena ciência deste perigo, demonstrado repetidas vezes nos últimos anos. Chegou o momento, agora, de articular alternativas, soluções, subversões, revoluções — sejam elas constitucionais, eleitorais ou estéticas. A História recente não carece de lembrete: ela pode passar à etapa das conclusões.