Este documentário parte da compreensão inicial de que uma sociedade não pode evoluir sem compreender seu passado. No que diz respeito às lutas LGBTQIA+, após quatro anos de um governo de extrema-direita, seria fundamental que os espectadores descobrissem nosso histórico de organização entre minorias, pelo menos desde a ditadura militar, para sabermos como proceder. O que funcionou no passado, o que já foi superado? Que portas foram abertas por ativistas, travestis e intelectuais de décadas atrás, para que o casamento entre pessoas do mesmo sexo e as paradas de orgulho LGBTQIA+ existissem pelas ruas das grandes cidades?
Logo, o discurso se legitima pela importância do tema e pela necessidade de cristalizá-lo na forma do cinema. As imagens adquirem um aspecto de âmbar, preservando às próximas gerações (ou àquelas contemporâneas, com acesso a documentários de baixo orçamento) um conhecimento dificilmente encontrado nos jornais e livros acadêmicos. A arte se torna arquivo, instrumento de memória, e ferramenta de batalha contra o esquecimento “natural” ou imposto por governos conservadores.
Sobretudo, a obra se insere na disputa de narrativas contra o conservadorismo raivoso. Quando nos dizem que gays, lésbicas e travestis são baderneiros que precisariam ser contidos pela polícia, as imagens do longa-metragem contra-argumentam com evidências da opressão policial, baseada na crença de que o Estado deveria intervir na sexualidade e identidade dos indivíduos. Por mais subjetiva que seja uma obra de arte — o filme jamais se pretende “imparcial”, felizmente —, ela se reveste da aparência de prova do que existiu, o ça a été do qual falava Roland Barthes. “Isso aqui existiu, nunca se esqueça”.
Por isso, compreende-se o valor de oferecer a voz e a imagem a tantas figuras fundamentais da luta por direitos humanos, porém invisíveis e desconhecidas pelo público amplo. João Silvério Trevisan, Glauco Mattoso, Renan Quinalha, Jane di Castro, Yone Lindgren e muitos outros têm seus rostos e pontos de vista imortalizados no combate político e social. Preocupado com a representatividade, o filme seleciona entrevistados gays, lésbicas, travestis e transexuais, tanto intelectuais quanto pessoas de baixa renda, tanto idosos quanto manifestantes jovens. Nota-se o foco na transmissão de conhecimento entre gerações.
A montagem efetua uma colagem ágil entre as conversas. […] Em contrapartida, tamanhas virtudes não escondem a configuração de uma obra um tanto comportada nas formas.
Luís Carlos de Alencar extrai falas potentes e informativas de cada entrevistado. É visível a capacidade do cineasta em deixá-los confortáveis para se expressarem num bate-papo informal entre amigos, o que retira o caráter pomposo e protocolar de tantas obras didáticas. Ao mesmo tempo, as pessoas escolhidas possuem distanciamento suficiente dos fatos para evocarem tortura, perseguição policial e humilhações sem qualquer caráter sentimental. A indignação com o descaso do Estado nunca se confunde com apelo melodramático, nem chantagem emocional.
Em paralelo, a montagem efetua uma colagem ágil entre as conversas contemporâneas e as imagens de arquivo. Há uma quantidade considerável de vídeos e fotografias, bem trabalhados nas animações, recortes e associações. A voz em off se sobrepõe às centenas de capas de revista, imagens de manifestações e fotografias de travestis que resistiram à ditadura militar. Resta a impressão de que sempre houve material suficiente a respeito destes indivíduos invisibilizados, faltando apenas a disposição a mostrá-los e organizá-los. O filme também assume o papel do arquivista que, deparando-se com incontáveis caixas de recortes dispersos, procura atribuir ordem e coerência aos registros.
Em contrapartida, tamanhas virtudes não escondem a configuração de uma obra comportada nas formas, pouco inventiva na criação de suas próprias metáforas, sem atritos na imagem nem sugestões de ordem estética. Não É a Primeira Vez que Lutamos pelo Nosso Amor propõe uma estrutura competente e refinada de talking heads, no entanto, jamais ultrapassa esta condição. A narrativa ainda se revela excessivamente dependente da fala de terceiros para avançar, produzindo poucas imagens e discursos por conta própria — a maior parte das captações atuais se limita às conversas com especialistas, confortavelmente instalados em seus sofás, sob um aparato cuidadoso de luz e som.
É comum notar a falta de ambição de linguagem em projetos documentais que visam representar personagens e temas subversivos. O retrato de rupturas exige uma estética de rupturas, com ruídos, excessos, e seus próprios choques ou provocações. Por mais competente que se revele em seu academicismo, o resultado se mostra incapaz de ultrapassar esse estágio informativo, bom-moço, de um cinema que poderia ser exibido nas salas de aula — caso as salas de aula apresentassem aos alunos conteúdos a respeito de minorias. Este audiovisual domestica um histórico de furor, vigor e juventude, através de uma estrutura plácida demais.
Logo, nenhuma imagem possui a mesma força do som (os depoimentos), e nenhuma cena se sobressai às demais, chamando atenção à própria construção. As discordâncias entre depoimentos são inexistentes: todos aparentam falar em uníssono, trazendo uma verdade indisputável — algo surpreendente, à luz de tantas discordâncias no interior dos movimentos LGBTQIA+, e esperadas de qualquer organização social. Adota-se um discurso de “nós contra eles”, sendo nós um coletivo progressista e militante, contra as vozes opressoras da maioria conservadora. Ora, nós também somos plurais, complexos, contraditórios, e tal riqueza merece ser valorizada.
Por fim, a obra cumpre seus objetivos. O diretor não parece almejar voos mais altos, dispensando um projeto profundamente autoral, capaz de seduzir por suas próprias imagens. Talvez aí resida sua humildade e fraqueza: o cinema político precisa parar de utilizar as imagens enquanto meros veículos de comunicação, equivalentes à televisão, à Internet, ao rádio, ao podcast. A arte possui capacidades únicas de representar um debate político via enquadramentos, luz, som, profundidade de campo, montagem, etc.
Desde o início do cinema, movimentos de câmera, enquadramentos e trilha sonora foram utilizados de modo a engrandecer ou diminuir uma causa, uma ideia ou uma pessoa. Governos conservadores como o de Bolsonaro sempre temeram o cinema justamente pelo potencial de significado, ao invés de mero veículo de informação — caso em que o alcance se mostra muito aquém das redes sociais, por exemplo. O documentário não pode se acomodar na estrutura envelhecida e desgastada que coloca o conteúdo acima da forma, e a nobreza do tema acima do conceito de sua realização. A arte política precisa ser, em primeiro lugar, estética. Que venham mais filmes politizados, enfurecidos, e sobretudo radicais como a temática impõe. Quanto mais o documentário brasileiro se afastar do modelo jornalístico, melhor.