Não É a Primeira Vez que Lutamos pelo Nosso Amor (2022)

O cinema como arquivo

título original (ano)
Não É a Primeira Vez que Lutamos pelo Nosso Amor (2022)
país
Brasil
gênero
Documentário
duração
105 minutos
direção
Luís Carlos de Alencar
Com
João Silvério Trevisan, Glauco Mattoso, Renan Quinalha, Jane di Castro, Yone Lindgren
visto em
30º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade (2022)

Este documentário parte da compreensão inicial de que uma sociedade não pode evoluir sem compreender seu passado. No que diz respeito às lutas LGBTQIA+, após quatro anos de um governo de extrema-direita, seria fundamental que os espectadores descobrissem nosso histórico de organização entre minorias, pelo menos desde a ditadura militar, para sabermos como proceder. O que funcionou no passado, o que já foi superado? Que portas foram abertas por ativistas, travestis e intelectuais de décadas atrás, para que o casamento entre pessoas do mesmo sexo e as paradas de orgulho LGBTQIA+ existissem pelas ruas das grandes cidades?

Logo, o discurso se legitima pela importância do tema e pela necessidade de cristalizá-lo na forma do cinema. As imagens adquirem um aspecto de âmbar, preservando às próximas gerações (ou àquelas contemporâneas, com acesso a documentários de baixo orçamento) um conhecimento dificilmente encontrado nos jornais e livros acadêmicos. A arte se torna arquivo, instrumento de memória, e ferramenta de batalha contra o esquecimento “natural” ou imposto por governos conservadores. 

Sobretudo, a obra se insere na disputa de narrativas contra o conservadorismo raivoso. Quando nos dizem que gays, lésbicas e travestis são baderneiros que precisariam ser contidos pela polícia, as imagens do longa-metragem contra-argumentam com evidências da opressão policial, baseada na crença de que o Estado deveria intervir na sexualidade e identidade dos indivíduos. Por mais subjetiva que seja uma obra de arte — o filme jamais se pretende “imparcial”, felizmente —, ela se reveste da aparência de prova do que existiu, o ça a été do qual falava Roland Barthes. “Isso aqui existiu, nunca se esqueça”. 

Por isso, compreende-se o valor de oferecer a voz e a imagem a tantas figuras fundamentais da luta por direitos humanos, porém invisíveis e desconhecidas pelo público amplo. João Silvério Trevisan, Glauco Mattoso, Renan Quinalha, Jane di Castro, Yone Lindgren e muitos outros têm seus rostos e pontos de vista imortalizados no combate político e social. Preocupado com a representatividade, o filme seleciona entrevistados gays, lésbicas, travestis e transexuais, tanto intelectuais quanto pessoas de baixa renda, tanto idosos quanto manifestantes jovens. Nota-se o foco na transmissão de conhecimento entre gerações.

A montagem efetua uma colagem ágil entre as conversas. […] Em contrapartida, tamanhas virtudes não escondem a configuração de uma obra um tanto comportada nas formas.

Luís Carlos de Alencar extrai falas potentes e informativas de cada entrevistado. É visível a capacidade do cineasta em deixá-los confortáveis para se expressarem num bate-papo informal entre amigos, o que retira o caráter pomposo e protocolar de tantas obras didáticas. Ao mesmo tempo, as pessoas escolhidas possuem distanciamento suficiente dos fatos para evocarem tortura, perseguição policial e humilhações sem qualquer caráter sentimental. A indignação com o descaso do Estado nunca se confunde com apelo melodramático, nem chantagem emocional.

Em paralelo, a montagem efetua uma colagem ágil entre as conversas contemporâneas e as imagens de arquivo. Há uma quantidade considerável de vídeos e fotografias, bem trabalhados nas animações, recortes e associações. A voz em off se sobrepõe às centenas de capas de revista, imagens de manifestações e fotografias de travestis que resistiram à ditadura militar. Resta a impressão de que sempre houve material suficiente a respeito destes indivíduos invisibilizados, faltando apenas a disposição a mostrá-los e organizá-los. O filme também assume o papel do arquivista que, deparando-se com incontáveis caixas de recortes dispersos, procura atribuir ordem e coerência aos registros.

Em contrapartida, tamanhas virtudes não escondem a configuração de uma obra comportada nas formas, pouco inventiva na criação de suas próprias metáforas, sem atritos na imagem nem sugestões de ordem estética. Não É a Primeira Vez que Lutamos pelo Nosso Amor propõe uma estrutura competente e refinada de talking heads, no entanto, jamais ultrapassa esta condição. A narrativa ainda se revela excessivamente dependente da fala de terceiros para avançar, produzindo poucas imagens e discursos por conta própria — a maior parte das captações atuais se limita às conversas com especialistas, confortavelmente instalados em seus sofás, sob um aparato cuidadoso de luz e som.

É comum notar a falta de ambição de linguagem em projetos documentais que visam representar personagens e temas subversivos. O retrato de rupturas exige uma estética de rupturas, com ruídos, excessos, e seus próprios choques ou provocações. Por mais competente que se revele em seu academicismo, o resultado se mostra incapaz de ultrapassar esse estágio informativo, bom-moço, de um cinema que poderia ser exibido nas salas de aula — caso as salas de aula apresentassem aos alunos conteúdos a respeito de minorias. Este audiovisual domestica um histórico de furor, vigor e juventude, através de uma estrutura plácida demais.

Logo, nenhuma imagem possui a mesma força do som (os depoimentos), e nenhuma cena se sobressai às demais, chamando atenção à própria construção. As discordâncias entre depoimentos são inexistentes: todos aparentam falar em uníssono, trazendo uma verdade indisputável — algo surpreendente, à luz de tantas discordâncias no interior dos movimentos LGBTQIA+, e esperadas de qualquer organização social. Adota-se um discurso de “nós contra eles”, sendo nós um coletivo progressista e militante, contra as vozes opressoras da maioria conservadora. Ora, nós também somos plurais, complexos, contraditórios, e tal riqueza merece ser valorizada.

Por fim, a obra cumpre seus objetivos. O diretor não parece almejar voos mais altos, dispensando um projeto profundamente autoral, capaz de seduzir por suas próprias imagens. Talvez aí resida sua humildade e fraqueza: o cinema político precisa parar de utilizar as imagens enquanto meros veículos de comunicação, equivalentes à televisão, à Internet, ao rádio, ao podcast. A arte possui capacidades únicas de representar um debate político via enquadramentos, luz, som, profundidade de campo, montagem, etc. 

Desde o início do cinema, movimentos de câmera, enquadramentos e trilha sonora foram utilizados de modo a engrandecer ou diminuir uma causa, uma ideia ou uma pessoa. Governos conservadores como o de Bolsonaro sempre temeram o cinema justamente pelo potencial de significado, ao invés de mero veículo de informação — caso em que o alcance se mostra muito aquém das redes sociais, por exemplo. O documentário não pode se acomodar na estrutura envelhecida e desgastada que coloca o conteúdo acima da forma, e a nobreza do tema acima do conceito de sua realização. A arte política precisa ser, em primeiro lugar, estética. Que venham mais filmes politizados, enfurecidos, e sobretudo radicais como a temática impõe. Quanto mais o documentário brasileiro se afastar do modelo jornalístico, melhor.

Não É a Primeira Vez que Lutamos pelo Nosso Amor (2022)
6
Nota 6/10

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