Reality (2023)

Pane na representação

título original (ano)
Reality (2023)
país
EUA
gênero
Drama, Policial
duração
85 minutos
direção
Tina Satter
elenco
Sydney Sweeney, Josh Hamilton, Marchánt Davis
visto em
73º Festival de Cinema de Berlim

Em 2017, a jovem Reality Winner foi presa em sua casa, na Geórgia, pelo FBI. Uma dúzia de homens chega em sua casa, com um mandado de busca e apreensão, acusando a linguista de ter retirado documentos sigilosos do escritório da força aérea norte-americana. Logo, ela é considerada uma traidora da pátria, potencialmente perigosa, por expor “ao inimigo” dados que comprovam a interferência russa nas eleições norte-americanas que consagraram Donald Trump vencedor. 

Após criar uma peça de teatro na Broadway com este tema, a diretora Tina Satter adapta o conteúdo ao cinema. Neste caso, ela se mostra menos preocupada em representar o episódio do que em recriá-lo, com o máximo de detalhes e precisão possível. Por isso, os letreiros iniciais afirmam que a integralidade do diálogo do longa-metragem, sem exceção, é extraída do arquivo sonoro obtido pelos policiais no caso. Em outras palavras, nada teria sido inventado, e os noventa minutos de confronto com os agentes ocorreram exatamente assim.

A promessa de verdade não basta à diretora, que volta a bater nesta tecla duas, três, cinco vezes. A cada dez minutos, aproximadamente, a imagem dos relatórios volta à tela, revelando o mesmo diálogo que escutamos entre os atores. “Está vendo? Estou fazendo direitinho”, insiste a direção. “A minha versão continua presa aos fatos”, garante. Mesmo as hesitações, os silêncios, os risos de nervoso, as repetições na fala são mantidas pela reconstituição. É óbvio que, para a autora, a fidelidade constitui a principal virtude do processo cinematográfico.

Para além do texto, existe a preocupação com a proximidade das imagens. Fotos da Reality original surgem na tela como flashes inseridos pela montagem. A intenção, novamente, é mostrar a evidente semelhança entre a tradutora real e a atriz Sydney Sweeney, que veste o mesmo short jeans e camisa branca, o cabelo preso da mesma maneira, e até adquire um tom de voz semelhante (já que os áudios originais são igualmente incorporados). No fundo, paira a impressão de que a autora adoraria ter efetuado um documentário, se pudesse. Na ausência de imagens, vê-se “obrigada” a reconstruir o caso, embora a ficção, enquanto linguagem, a aborreça profundamente.

Satter isenta-se da responsabilidade fundamental de emitir um ponto de vista a partir do ocorrido: por trás da aparência de objetividade, esconde a ausência de um posicionamento firme em relação à política norte-americana.

Assim, os 85 minutos de narrativa se desenvolvem numa cena única, praticamente em tempo real, enquanto um cronômetro avisa, no canto da tela, quanto tempo de gravação já foi efetuado pelos agentes do FBI — uma vez mais, numa prestação de contas ao espectador. Ninguém reclamará com Satter de falta de precisão, ou de fugir ao andamento exato da conversa naquele dia. No entanto, cabe questionar outros fatores muito mais importantes, em se tratando de uma obra de arte e de um cinema político: qual é o ponto de vista da direção? O que a criadora teria a oferecer ao episódio verídico, para além do lembrete de sua existência?

Aí residem os grandes problemas éticos e morais de Reality. Em primeiro lugar, o drama evita elaborar uma reflexão própria a partir do tema escolhido. Excessivamente preso à ata policial, priva-se de imaginar, de supor, de levantar dúvidas, de inserir esta perquisição em outros casos de intervenção estatal na atitude de cidadãos norte-americanos. Satter isenta-se da responsabilidade fundamental de emitir um ponto de vista a partir do ocorrido: por trás da aparência de objetividade (algo impossível, e mesmo indesejável), esconde a ausência de um posicionamento firme em relação à política norte-americana de considerar divergências como crimes de terrorismo interno.

Em segundo lugar, aposta numa série de tiques e truques questionáveis em termos de linguagem. Como o texto original possui partes censuradas, cobertas por tinta preta, a cada vez que tais palavras são mencionadas, a direção decide fazer com que os personagens magicamente desapareçam dos cômodos, junto de sua voz. Segundos depois, estão de volta. Na lógica de não fazer nada além do que o material a permita, Satter mantém a censura e se torna conivente com ela, julgando ser de sua responsabilidade respeitar o veto alheio. Por isso, revela-se condescendente demais com o estado policial norte-americano.

Além disso, esses truques produzem um efeito de ilusionismo que vai na contramão do realismo almejado. Reality e os agentes Garrick (Josh Hamilton) e Taylor (Marchánt Davis) somem numa nuvem multicolorida, combinando magia com a impressão de uma falha brusca na edição. A direção insiste que a censura se torne um espetáculo, quase um instante de horror (o que se soma à trilha sonora amedrontadora, com efeitos perturbadores cíclicos). Conforme a pressão se acentua sobre a menina, insere-se eco no som, desfoques no rosto e na profundidade da imagem, além de distorções na captação das conversas. 

O longa-metragem é bastante maltratado na pós-produção, graças aos sintomas deste cinema nervoso e sensacionalista, que enxerga nos recursos de imagem e som uma possibilidade de perturbar os sentimentos, ao invés de construir metáforas e emitir uma forma de diálogo próprio. É impressionante como o longa-metragem, tão psicorrígido em seu formato autoimposto, revela-se desprovido de imaginação e de recursos para além destes filtros dignos dos tempos de redes sociais.

Pelo menos, o drama conta com uma atuação excelente de Sydney Sweeney. A talentosa atriz tem se destacado em praticamente todos os projetos em que atua, transitando entre o drama social, suspense e o cinema de gênero com igual intensidade. Aqui, ela efetua uma partitura preciosa, repleta de nuances para a garota que permanece de pé durante 90 minutos, respondendo às perguntas do interrogatório. Ela passa da inconsequência à calma, à desconfiança, ao medo, ao desespero, à afronta. O texto constitui um presente para a jovem que consegue transmitir, de maneira orgânica, as inúmeras hesitações do relatório original.

A cineasta é esperta a ponto de colar a imagem ao rosto da protagonista, que segura sem dificuldades a pressão imposta pelo dispositivo e pelos demais personagens. No entanto, a câmera nunca deixa de soar como uma forma de interrogatório em si própria, uma câmera-acusação, deliciando-se com a provocação exercida sobre a linguista. Em última instância, o ponto de vista soaria mais próximo dos agentes Garrick e Taylor do que da garota, razão pela qual o projeto pode ser lido de maneira mais conservadora e isenta do que propriamente questionadora. 

Há um teor comportado demais, temeroso em excesso, em elencar os desmandos da política norte-americana, os gestos de corrupção de Trump, e a maneira abusiva com que as agências de inteligência lidam com discordâncias. Em última instância, os agentes educadíssimos e calmos, muito preocupados com a saúde da cachorra, da gata e de Reality, são defendidos pelo filme graças à elegância na condução do caso. De qualquer modo, Satter não pretende se posicionar, nem dizer o que pensa. Ela insiste apenas que “as coisas ocorreram assim”. No entanto, tal conteúdo poderia ser descoberto num acesso rápido à Wikipédia, ou qualquer página semelhante. Faltou explorar o cinema enquanto arte, ao invés de cópia-conforme do real.

Reality (2023)
4
Nota 4/10

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