Renfield: Dando Sangue pelo Chefe (2023)

A carnificina lúdica

título original (ano)
Renfield (2023)
país
EUA
gênero
Comédia, Terror
duração
93 minutos
direção
Chris McKay
elenco
Nicholas Hoult, Nicolas Cage, Awkwafina, Ben Schwartz, Shohreh Aghdashloo, Brandon Scott Jones, Adrian Martinez, Camille Chen, Bess Rous, Jenna Kanell, Danya LaBelle, Christopher Matthew Cook
visto em
Cinemas

O imaginário de Drácula costuma estar associado a condes endinheirados perambulando pela escuridão de castelos luxuosos, com veludos vermelhos e castiçais ao redor. Há um componente erótico evidente no vampiro aristocrático que morde o pescoço de suas vítimas (mas poderia extrair sangue de qualquer outra parte do corpo, certo?), conquistando-as graças ao poder de sedução. Em geral, são os humanos que se deslocam até o personagem, sem que ele precise persegui-los.

Neste contexto, Renfield: Dando Sangue pelo Chefe imagina uma maneira cômica de revirar pelo avesso estas regras implícitas. Onde se esperava opulência e elegância, encontra-se um morto-vivo decadente, sobrevivendo num hotel abandonado, e mudando-se com frequência a novos bairros marginais das grandes cidades. Ao invés de belo e malicioso, demonstra interesse sexual nulo em seus alvos. Agora, não devora mocinhas indefesas, preferindo esperar os cadáveres trazidos a ele. O novo vampiro possui mais características de um zumbi, ou um animal predador, do que do conde lendário.

Frente a ele, existem outras figuras que fogem das expectativas. O protagonista, Renfield, mata indivíduos aleatórios para entregar ao chefe. Mesmo assim, o diretor Chris McKay enxerga no rapaz um sujeito dócil, preso a um relacionamento abusivo. De temperamento gentil e solidário, ele busca apenas escapar às garras do sujeito controlador. Assim, entram em cena a policial asiática, mais íntegra do que todos os homens com quem trabalha; o traficante ineficaz e atrapalhado, e assim por diante.

O longa-metragem opera numa estrutura lúdica, parodiando estruturas de controle e dominação. Mafiosos possuem mommy issues, enquanto o assassino Renfield (Nicholas Hoult) e a policial Rebecca (Awkwafina), por quem se apaixona, vivem atormentados por daddy issues. A configuração poderia ser muito interessante, do ponto de vista psicológico, caso não fosse tão simplória: todos os jovens se veem igualmente oprimidos pelas autoridades paternas (reais ou simbólicas), precisando se emancipar para seguir em frente. A premissa funciona melhor enquanto alusão a Édipo Rei do que ao Drácula.

A conversão do gore em autoajuda, e do terror em cartoon, deixa a amarga impressão de um filme sem espectador definido. O resultado soa infantil demais para o público adulto, e sangrento demais para as crianças.

A subversão pelo exato oposto (sujeitos tolos e passivos, ao invés de violentos) se constrói de maneira incrivelmente domesticada e didática. Além de protagonista, Renfield assume a função de narrador da própria trama, e comentarista das jornadas alheias. Ele explica brevemente como conquistou seus poderes, o envolvimento com Drácula, os motivos das mudanças de cidade. Conforme ataca novas vítimas, responde ao vivo aos golpes, como se estivesse fazendo uma live para as redes sociais: “Eu não esperava por isso!”, dispara após um chute. 

Já a matriarca do crime (Shohreh Aghdashloo) explica ao filho como cresceram no submundo: “Nossa reputação de violência e crueldades é algo que me esforcei muito para criar”. O maniqueísmo se faz evidente: há personagens profundamente bonzinhos, e outros, incrivelmente malvados, sem meios-termos. Eles se comunicam com a clareza de uma história em quadrinhos pouco inspiradas, composta por super-heróis e vilões. No final, os personagens ingênuos descobrem que “nunca é tarde demais para ser um herói”, nas palavras do protagonista.

Esta forma de linguagem, que tende a explicar, reexplicar e simplificar cada ensinamento moral, se aproxima bastante do cinema infantil. Pela composição exagerada de Nicolas Cage no papel de Drácula (aqui, pelo menos, seus trejeitos expansivos encontram um personagem à altura), o tom cartunesco se torna cada vez mais inocente. Nada se leva a sério: trata-se de personagens brincando de mocinhos e bandidos, ao invés de figuras perversas ou generosas, com personalidades definidas. As cenas de luta, incluindo personagens voando vários metros no ar, ou garfos ricocheteando no chão (e retornando à jugular dos figurantes) resumem a atmosfera de fantasia tresloucada.

O problema se encontra na vontade de adaptar este conteúdo pueril à classificação 18 anos. Renfield: Dando Sangue pelo Chefe está repleto de membros cortados, vísceras escapando do abdômen, litros de sangue falso e secreções escapando dos corpos. A carnificina assume seu caráter ridículo, exageradíssimo, e um tanto brincalhão — pernas são usadas para substituir estacas no peito de um rapaz, e os braços decepados de uma vítima permitem estapear o bandido seguinte. Insetos devorados consolidam o aspecto asqueroso, engraçado e controlado, palatável ao gosto das crianças.

É interessante que uma linguagem tão associada ao terror se exagere ao limite da caricatura, restando pouco de realmente assustador. Esta é uma paródia do cinema de gênero, ao invés de uma produção de horror assumida como tal. Depois de tantos cadáveres desproporcionais, em mortes improváveis e carnavalescas, resta a impressão de uma distorção juvenil, espécie de faz de conta despojado da encenação da morte. Os personagens se assemelham a bonecos nas mãos de uma criança de mente fértil.

No entanto, a violência explícita impede que as crianças tenham acesso a um projeto tão infantil. Resta oferecer aos adultos esta forma simplificada de cinema, ao limite do grosseiro em termos de narrativa, desenvolvimento e construção de personagens. Em oposição à subversão dos clássicos literários e dos corpos jorrando sangue, o que realmente incomoda é a pouca-fé dos criadores na inteligência do público, e em sua capacidade de compreender nuances ou metáforas. 

Por isso, a subtrama de Rebecca se estende excessivamente (ela chega a ocupar mais tempo de tela do que o próprio Drácula), e a conclusão acredita estar oferecendo um ensinamento válido a respeito do amor-próprio. A conversão do gore em autoajuda, e do terror em cartoon, deixa a amarga impressão de um filme sem espectador definido. O resultado soa infantil demais para o público adulto, e sangrento demais para as crianças. Não se comunica de fato com nenhuma das duas parcelas. Remete a uma Sessão da Tarde tardia, espécie de filme que nasce para ocupar o filão das produções que se contentam em ser um pastiche inofensivo de ideias, marcas e personagens conhecidos. 

Renfield: Dando Sangue pelo Chefe (2023)
4
Nota 4/10

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