O imaginário de Drácula costuma estar associado a condes endinheirados perambulando pela escuridão de castelos luxuosos, com veludos vermelhos e castiçais ao redor. Há um componente erótico evidente no vampiro aristocrático que morde o pescoço de suas vítimas (mas poderia extrair sangue de qualquer outra parte do corpo, certo?), conquistando-as graças ao poder de sedução. Em geral, são os humanos que se deslocam até o personagem, sem que ele precise persegui-los.
Neste contexto, Renfield: Dando Sangue pelo Chefe imagina uma maneira cômica de revirar pelo avesso estas regras implícitas. Onde se esperava opulência e elegância, encontra-se um morto-vivo decadente, sobrevivendo num hotel abandonado, e mudando-se com frequência a novos bairros marginais das grandes cidades. Ao invés de belo e malicioso, demonstra interesse sexual nulo em seus alvos. Agora, não devora mocinhas indefesas, preferindo esperar os cadáveres trazidos a ele. O novo vampiro possui mais características de um zumbi, ou um animal predador, do que do conde lendário.
Frente a ele, existem outras figuras que fogem das expectativas. O protagonista, Renfield, mata indivíduos aleatórios para entregar ao chefe. Mesmo assim, o diretor Chris McKay enxerga no rapaz um sujeito dócil, preso a um relacionamento abusivo. De temperamento gentil e solidário, ele busca apenas escapar às garras do sujeito controlador. Assim, entram em cena a policial asiática, mais íntegra do que todos os homens com quem trabalha; o traficante ineficaz e atrapalhado, e assim por diante.
O longa-metragem opera numa estrutura lúdica, parodiando estruturas de controle e dominação. Mafiosos possuem mommy issues, enquanto o assassino Renfield (Nicholas Hoult) e a policial Rebecca (Awkwafina), por quem se apaixona, vivem atormentados por daddy issues. A configuração poderia ser muito interessante, do ponto de vista psicológico, caso não fosse tão simplória: todos os jovens se veem igualmente oprimidos pelas autoridades paternas (reais ou simbólicas), precisando se emancipar para seguir em frente. A premissa funciona melhor enquanto alusão a Édipo Rei do que ao Drácula.
A conversão do gore em autoajuda, e do terror em cartoon, deixa a amarga impressão de um filme sem espectador definido. O resultado soa infantil demais para o público adulto, e sangrento demais para as crianças.
A subversão pelo exato oposto (sujeitos tolos e passivos, ao invés de violentos) se constrói de maneira incrivelmente domesticada e didática. Além de protagonista, Renfield assume a função de narrador da própria trama, e comentarista das jornadas alheias. Ele explica brevemente como conquistou seus poderes, o envolvimento com Drácula, os motivos das mudanças de cidade. Conforme ataca novas vítimas, responde ao vivo aos golpes, como se estivesse fazendo uma live para as redes sociais: “Eu não esperava por isso!”, dispara após um chute.
Já a matriarca do crime (Shohreh Aghdashloo) explica ao filho como cresceram no submundo: “Nossa reputação de violência e crueldades é algo que me esforcei muito para criar”. O maniqueísmo se faz evidente: há personagens profundamente bonzinhos, e outros, incrivelmente malvados, sem meios-termos. Eles se comunicam com a clareza de uma história em quadrinhos pouco inspiradas, composta por super-heróis e vilões. No final, os personagens ingênuos descobrem que “nunca é tarde demais para ser um herói”, nas palavras do protagonista.
Esta forma de linguagem, que tende a explicar, reexplicar e simplificar cada ensinamento moral, se aproxima bastante do cinema infantil. Pela composição exagerada de Nicolas Cage no papel de Drácula (aqui, pelo menos, seus trejeitos expansivos encontram um personagem à altura), o tom cartunesco se torna cada vez mais inocente. Nada se leva a sério: trata-se de personagens brincando de mocinhos e bandidos, ao invés de figuras perversas ou generosas, com personalidades definidas. As cenas de luta, incluindo personagens voando vários metros no ar, ou garfos ricocheteando no chão (e retornando à jugular dos figurantes) resumem a atmosfera de fantasia tresloucada.
O problema se encontra na vontade de adaptar este conteúdo pueril à classificação 18 anos. Renfield: Dando Sangue pelo Chefe está repleto de membros cortados, vísceras escapando do abdômen, litros de sangue falso e secreções escapando dos corpos. A carnificina assume seu caráter ridículo, exageradíssimo, e um tanto brincalhão — pernas são usadas para substituir estacas no peito de um rapaz, e os braços decepados de uma vítima permitem estapear o bandido seguinte. Insetos devorados consolidam o aspecto asqueroso, engraçado e controlado, palatável ao gosto das crianças.
É interessante que uma linguagem tão associada ao terror se exagere ao limite da caricatura, restando pouco de realmente assustador. Esta é uma paródia do cinema de gênero, ao invés de uma produção de horror assumida como tal. Depois de tantos cadáveres desproporcionais, em mortes improváveis e carnavalescas, resta a impressão de uma distorção juvenil, espécie de faz de conta despojado da encenação da morte. Os personagens se assemelham a bonecos nas mãos de uma criança de mente fértil.
No entanto, a violência explícita impede que as crianças tenham acesso a um projeto tão infantil. Resta oferecer aos adultos esta forma simplificada de cinema, ao limite do grosseiro em termos de narrativa, desenvolvimento e construção de personagens. Em oposição à subversão dos clássicos literários e dos corpos jorrando sangue, o que realmente incomoda é a pouca-fé dos criadores na inteligência do público, e em sua capacidade de compreender nuances ou metáforas.
Por isso, a subtrama de Rebecca se estende excessivamente (ela chega a ocupar mais tempo de tela do que o próprio Drácula), e a conclusão acredita estar oferecendo um ensinamento válido a respeito do amor-próprio. A conversão do gore em autoajuda, e do terror em cartoon, deixa a amarga impressão de um filme sem espectador definido. O resultado soa infantil demais para o público adulto, e sangrento demais para as crianças. Não se comunica de fato com nenhuma das duas parcelas. Remete a uma Sessão da Tarde tardia, espécie de filme que nasce para ocupar o filão das produções que se contentam em ser um pastiche inofensivo de ideias, marcas e personagens conhecidos.