Kleber Mendonça Filho gosta de filmar os locais onde vive. Isso inclui os apartamentos onde cresceu, os bairros que frequentou, os cinemas que fomentaram o seu olhar ao mundo. Suas histórias fictícias, a respeito de personagens inventados, baseiam-se em vivências cotidianas, anedotas de terceiros, devidamente ressignificadas pela representação. O cineasta parece digerir o real através da imagem, ou ainda acertar contas com temas que lhe são caros (a especulação imobiliária, a destruição do patrimônio cultural, a concentração de renda) por meio da criação. Para alguns autores, a arte desempenha uma função terapêutica.
Este documentário convida a uma leitura ainda mais pessoal do que os trabalhos anteriores. Afinal, o diretor se coloca em cena, filma a esposa, os filhos. Resgata a mãe, o pai, o irmão e os amigos em material de arquivo. Apresenta cômodo a cômodo do apartamento ocupado por ele e por seus filmes durante décadas. Retratos Fantasmas serve como plano de detalhe a uma costura sólida entre o privado e o particular: talvez, até agora, pairasse a impressão de que havia o artista, e então havia a obra. O roteiro visa demonstrar que ambos partem do mesmo movimento, retroalimentando-se.
Crítico de cinema, com habilidades notáveis para cronista (vide a incorporação orgânica do cotidiano em suas histórias), Kleber Mendonça Filho oferece, neste caso, uma espécie de (auto)análise da imagem. Observa a trinca de elementos (o cinema, Recife, sua história) através de uma narrativa crítica, interpretativa, que acompanha a integralidade da sessão por meio de uma voz off controlada pelo próprio autor.
Kleber Mendonça Filho dá prosseguimento ao gesto de observar prédios e estruturas sociais assim como quem retrata familiares, com o mesmo carinho e atenção. O cineasta filma os espaços como quem filma gente.
O texto é escrito previamente, no entanto, evita a pompa das explicações acadêmicas, do tipo que se presta a revelar grandes conhecimentos ou oferecer verdades inquestionáveis. O diretor conversa com o interlocutor como quem lança ideias esparsas a um amigo, num bar. Ele pondera. Confessa que cogitou retirar frases da montagem, antes de deixá-las onde estavam. Há certa aparência de sonho, ou talvez de um devaneio acordado na condução etérea dos temas e espaços. Felizmente, as reflexões são costuradas por um excelente montador, Matheus Farias, dotado de um senso ímpar de ritmo e estrutura.
A impressão volátil se confirma pela quantidade de fantasmas, literais ou metafóricos, que compõem a narrativa. Por acaso, no passado, o cineasta acredita ter registrado uma assombração na fotografia espontânea tirada dentro de casa. Letreiros agitam-se sozinhos após um defeito eletrônico. As salas de cinema abandonadas e os escritórios de produtoras desalojados constituem outra evocação do mundo dos mortos. A cena final retorna a possibilidade de que as pessoas, para além das cidades, filmes e cinemas, desapareçam. Bela e inusitada proposta de costurar o real pela fantasia, ou ainda de expandir os sentidos da reflexão rumo ao final, ao invés de fechá-los.
A estrutura em três atos, que domina a filmografia do autor, se repete aqui, para conectar três propostas de análise. Grosso modo, os segmentos sugerem que: 1. Kleber Mendonça Filho enxerga o cinema em sua infância e sua vida; 2. Ele enxerga o cinema como algo intrínseco à cidade; 3. Ele enxerga o cinema no mundo, através do peso exercido nos espectadores. Parte, portanto, do íntimo ao universal, da predileção pessoal por determinados gestos e filmes à experiência cinematográfica enquanto possibilidade de comunhão e culto. Assim como as religiões cristãs, o cinema conseguiria unir a vivência particular e a catarse coletiva.
Enquanto isso, filmam-se as fachadas, as estruturas vazias, os prédios abandonados. O “material de arquivo” passa também pela arquitetura e geografia da cidade, transformadas em protagonistas das obras do diretor pernambucano. Kleber Mendonça Filho sempre demonstrou uma fascinação, meio lírica, meio sociológica, pelos espaços em via de desaparecimento. Ele filmou o apartamento vazio em O Som ao Redor, junto à casa tomada, deixando de representar lar e proteção. Dedicou-se ao prédio em via de demolição de Aquarius, onde hoje se tiram selfies, tal qual um ponto turístico do bairro. Imaginou cidades que desaparecem do mapa em Bacurau (os fantasmas, sempre eles), além de uma Recife que perde seu calor, e de uma casa que perde braços, pernas e mães. As geografias se esgotam, minguam, morrem. Este apaixonado pelo cinema de horror prefere desenvolver, ao invés de criaturas possuídas, uma série de narrativas de despossessão.
Por isso, o cinema se converte em instrumento para driblar, simbolicamente, a morte dos espaços. Esta homenagem ao cinema e à cidade passam longe do ideal turístico e marqueteiro. Esqueça o “venha”, “consuma”, “divirta-se”, “conheça”. Frases como “o cinema é a maior diversão” estampadas na parede carregam um tom de ironia. Beiram a fantasia, pela distância em relação à experiência real e contemporânea dos filmes com o espectador médio, que passa longe dos grandes cinemas de rua, preferindo se concentrar nos shopping centers e nos serviços de streaming. Amava-se de maneira diferente naqueles tempos.
No entanto, Retratos Fantasmas resgata a fisicalidade do cinema, para além de mera nostalgia. Inúmeros filmes são citados, entretanto, nenhum deles será defendido como melhor ou mais importante do que os demais — nem na filmografia de Kleber Mendonça, nem nos clássicos exibidos no São Luiz. O projeto dá um passo atrás em relação ao “amor ao cinema”, ou seja, à tentativa de legitimar a abordagem pelas vias do afeto. O documentário se aproxima da crônica autobiográfica e autocrítica de uma cidade em transformação — caso estas categorias possuam sentido juntas.
Ele avalia, analisa, investiga o cinema, ultrapassando a esfera dos longas e curtas-metragens exibidos nas salas escuras. Como são importantes os estudos do cinema enquanto fenômeno cultural, superando a mera coleção física e emocional de obras experimentadas! Os fantasmas, neste caso, não metem medo. Pelo contrário, consideram a sua invisibilidade um “superpoder”, uma anedota divertida a compartilhar com desconhecidos. Kleber Mendonça Filho dá prosseguimento ao gesto de observar prédios e estruturas sociais assim como quem retrata familiares, com o mesmo carinho e atenção. O cineasta filma os espaços como quem filma gente.