Rita (2024)

Retrato doce de uma vida amarga

título original (ano)
Rita (2024)
país
Espanha
gênero
Drama
duração
94 minutos
direção
Paz Vega
elenco
Sofía Allepuz, Alejandro Escamilla, Paz Vega, Roberto Álamo
visto em
77º Festival de Locarno 2024

Aos sete anos de idade, Rita (Sofía Allepuz) é uma garota inteligente e bem comportada. Ajuda a mãe nas tarefas de casa, e cuida do irmão mais novo quando necessário. Seu universo se limita a pedir para ir à piscina, ou se aventurar pela primeira vez nas ruas distantes de sua casa. Durante um verão, no entanto, começa a perceber fissuras na estrutura familiar tida como inabalável: aparentemente, o pai e a mãe a amam, porém, não amam um ao outro. Às vezes, eles gritam, brigam, quebram objetos. Como o afeto pode estar misturado à violência?

Em seu primeiro longa-metragem como diretora, Paz Vega retorna aos anos 1980, numa aplicação tão previsível quanto competente do coming of age story. Como de costume, enxerga a infância enquanto tempo de inocência, ao passo que a descoberta do mundo adulto equivale a perceber uma série de violências — neste caso, de gênero. Existe um sentimento amargo em querer crescer, sabendo que o crescimento implica em perigos e infelicidade. Ao mesmo, os pais se tornam pessoas admiráveis, a quem se quer parecer e distanciar simultaneamente. São exemplos e contra-exemplos.

A cineasta demonstra belo trato com atores mirins. Allepuz e Alejandro Escamilla estão confortáveis em cena, fugindo à vaidade normalmente exigida aos pequenos pelo cinema publicitário, e demonstrando espontaneidade rara para atores infantis. A garota possui olhos curiosos, e apresenta suas falas com o ritmo e traquejo verossímeis para uma garotinha confusa em relação ao mundo. No papel da mãe, Vega oferece a si própria um papel discreto, filmando-se à distância, sem destaques nem arroubos de emoção. Reserve os holofotes às crianças, que comandam o ponto de vista.

O drama efetua uma crônica muito eficaz do cotidiano. Em contrapartida, a trilha sonora prejudica bastante o resultado.

Ao mesmo tempo, efetua uma crônica muito eficaz do cotidiano. O roteiro se dedica ao ato de dobrar a toalha de plástico depois das refeições e coletar as migalhas de pão sobre a mesa. Representa a mãe preocupada em colocar protetor solar na pele dos pequenos, e exigindo duas horas de espera pós-refeição antes de entrarem na piscina. A vida de uma classe-média patriarcal, com o marido chegando cansado do trabalho, exigindo uma cervejinha gelada, abarca um vasto conjunto de detalhes. Deixam a impressão de uma experiência pessoal — a autora parece saber muito bem do que está falando.

Por este motivo, Rita impressiona com a riqueza de sons e o cuidado na construção dos planos. O cotidiano das crianças está repleto de barulhos da televisão, carros passando lá fora, a vizinha pedindo alguma ajuda. A torneira não foi fechada direito e continua pingando; a criança finge dormir, mas escuta a conversa dos pais após altas horas da noite. As sequências transparecem dinamismo, com corpos entrando e saindo, além de sugestões de ação fora de quadro — sobretudo quando as violências entram em cena.

Em contrapartida, as tragédias condicionam demais o andamento da trama. O longa-metragem demonstra dificuldade de avançar sem a nova queda da avó, o quase-afogamento do irmãozinho, o quase-acidente da garota na rua ou o espancamento da mãe. Dedica-se à face explícita das agressões, ao invés da confusão da criança e de seu tempo para assimilar as ordens que lhe são impostas. Existe ação demais para psicologia de menos, ou reviravoltas em excesso para pouco tempo de processar tais acontecimentos.

Assim, o resultado alterna cenas realmente preciosas com outras voltadas ao teor melodramático. No topo de um prédio, Rita e o amigo mais velho, filho de mãe divorciada, compartilham suas compreensões acerca da vida e da morte, na luz quase totalmente escurecida do fim da tarde. Entendendo o risco corrido pela mãe face à violência masculina, a garota acalma o irmão menor na cama, ainda que ela mesma manifeste dúvidas em relação aos fatos. Em instantes como estes, Vega demonstra um cuidado precioso com os tons, evitando significados óbvios e combinando ternura e hostilidade, num único plano.

Entretanto, em seguida, chegam outras construções, menos inspiradas, a exemplo de uma viagem à praia filmada com a linguagem típica de uma propaganda turística, ou da correia do cachorro, evidentemente solta para que a menina enfrente o medo de testemunhar o atropelamento do animal. O discurso inspirador da mãe, incluindo frases como “Você será uma mulher livre”, incomoda tanto quanto os letreiros finais, quando a mensagem evidente até então é explicitada, como se a diretora não confiasse na compreensão de seu público. O didatismo atenua a bela poesia.

Em especial, a trilha sonora prejudica bastante o resultado. Rita é marcado por pianos doces e instrumentos melancólicos de sopro, utilizados em alto volume, insistentemente, para pontuar emoções. Vega tende a sublinhar o aspecto de sonho apartado da realidade. Assim que a narrativa ameaça se tornar mais amarga, a mise en scène a segura do lado de uma doçura ingênua, incompatível com a perspectiva de uma criança perdendo a inocência. Um filme infantil é muito diferente de um filme sobre crianças — às vezes, a obra se perde entre estes polos radicalmente distintos.

Rumo à conclusão, um gesto trágico ocorre de maneira acentuada, caso em que a direção recorre aos chavões televisivos. Apesar de algumas insistências no tom, o drama revela uma cineasta de talento. A autora orquestra as diferentes funções artísticas (direção de arte, fotografia, montagem) de maneira coesa, dedicando-se a um precioso olhar cotidiano. Caso se livrasse das muletas em finalização e pós-produção (a óbvia canção “Mas tudo passa, tudo passará” no encerramento), resultaria numa investida ainda mais potente. Mesmo assim, as muletas habituais do folhetim não escondem as qualidades de uma autora que esperamos reencontrar em novos projetos, na cadeira da direção.

Rita (2024)
6
Nota 6/10

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