Este drama pode despertar sentimentos contraditórios. Visualmente, ele é belíssimo, demonstrando raro grau de refinamento para um cineasta em seu segundo longa-metragem. A coprodução entre Reino Unido, Irlanda, França, Alemanha, Grécia, Holanda, Catar, Arábia Saudita e Palestina certamente dispõe de meios mais que suficientes para filmar a jornada de dois imigrantes palestinos vivendo na Grécia. Eles buscam alguma maneira de imigrar à Alemanha, no intuito de abrirem um café e viverem pacificamente no país vizinho.
Os dois atores principais são excelentes (assim como os coadjuvantes, vale dizer). É impressionante o que Mahmood Bakri e Aram Sabbah apresentam em termos de composição. O trabalho de corpo, de expressões, de voz, convence por completo, tanto na interação afetiva entre os primos, quanto nas cenas de furto, golpes e prostituição. A atmosfera sonora demonstra captação preciosa de ruídos, bem orquestrados junto aos diálogos; enquanto a direção de arte decora e ocupa, de modo naturalista, os cortiços onde vivem os protagonistas e seus amigos. A montagem, em paralelo, se prova bastante fluida, sem uma única cena arrastada, nem apressada.
Pode-se falar em um grau máximo de profissionalismo e eficiência, numa escola bastante específica de cinema. Este realismo social remete sobretudo aos irmãos Dardenne, que aperfeiçoaram o conceito antigo do “filme de personagem”, ou da “câmera-personagem” que segue seus protagonistas sofridos para onde forem: subindo e descendo escadas; chorando na cama ou correndo pelas ruas; explorando os outros ou sendo explorados por eles.
Chatila e Reda dominam a integralidade das cenas deste longa-metragem, que toma a precaução de criticar a falta de acolhimento na Europa, porém, sem vilanizar governos nem cidadãos; enquanto demonstra ternura pelos heróis, ainda que obviamente discorde dos golpes e esquemas ilegais praticados por eles em Atenas. O cineasta palestino-dinamarquês Mahdi Fleifel tece comentários de maneira consciente, sem realmente incomodar nenhuma parcela da sociedade. Escaparia com destreza a qualquer acusação de defender apenas um lado, de construir caricaturas ou simplificações políticas de algum segmento em particular.
Nota-se o senso de superioridade civilizatória nestes retratos polidíssimos do mundo-cão, aplicados a cidadãos precarizados do terceiro-mundo.
O texto poderia se interromper por aqui. Cinco estrelas, excelente, filme magnífico, seguimos adiante. No entanto, chega um momento em que esta forma de representação começa a ser justamente questionada. Os dramas dos irmãos Dardenne têm despertado ressalvas, tanto da crítica internacional quanto dos povos representados, em virtude das boas-intenções deste olhar europeu. Sim, presenciamos dois palestinos lutando pela sobrevivência, recorrendo à exploração de indivíduos em situação igualmente precária para juntarem dinheiro. É lindo, é triste, mas, sobretudo, é um tanto fetichista.
Nota-se o senso de superioridade civilizatória nestes retratos polidíssimos do mundo-cão, aplicados a cidadãos precarizados do terceiro-mundo. Assistimos à saga destes homens desprovidos de perspectivas reais de mudança, preocupados com o peso moral de suas ações (“Nós somos pessoas más, Chatila”), numa perspectiva tão cúmplice quanto conformista. Olhe só, a vida de imigrantes ilegais é horrível mesmo, veja que pavor, que calvário, que diferente da nossa, enquanto espectadores de classe média (na maioria), que jamais enfrentamos tal realidade.
Assistimos ao martírio do diferente, como quem pensa: “Ainda bem que isso não acontece comigo”. Então, saímos tranquilamente da sala de cinema e seguimos com as nossas vidas, tendo constatado uma realidade avessa a qualquer investigação sobre onde surgiram, como se manifestam em diferentes vertentes, quem poderia superá-las, de que maneira. Há alternativas ao tráfico humano e à crise migratória abordadas no longa? Não saberemos. Fleifel avisa: isso existe, é grave, importante, urgente. O espectador que deduza o que lhe convier a partir da imersão num humanismo piedoso.
Ninguém espera que o cineasta solucione os maiores problemas da política contemporânea na duração de um filme. Entretanto, pede-se que ele formule as perguntas corretas, embora obviamente seja incapaz de oferecer respostas. Solicita-se que ele encontre, na estética e nas formas, maneiras de representar a violência sofrida por eles, o furor que sentem diante da fome e da ausência de oportunidades. Exige-se que encontrem enquadramentos, luzes, ritmos e ângulos capazes de transmitir a sensação de não-pertencimento, pelo olhar de quem a vive de fato.
Ora, Rumo a uma Terra Desconhecida adota a câmera estabilizada na mão durante as movimentações, e planos de conjunto para valorizar espaços no cortiço (e destacar as expressões dos atores). Manifesta pudor ao revelar o encontro com clientes gays (cortados do enquadramento) e ilustrar o consumo de drogas, para que ninguém o considere fetichista, nem omisso em relação ao tema da dependência química. O formato se revela tão funcional quanto impessoal. Serviria à história de dois palestinos, ou àquela de Rosetta, de Sandra em Dois Dias, uma Noite, de Bruno em A Criança.
Afinal, esta é a estética que os grandes festivais internacionais (Cannes, Berlim, Veneza) convencionaram valorizar, selecionar e recompensar. Trata-se de uma denúncia que jamais provoca asco, raiva nem indignação, apenas um respeitoso senso de pesar. Este é o tipo de cinema ainda exigido (quase exclusivamente) do cinema latino-americano, quando filma suas favelas, suas gangues, cartéis e traficantes. Ou então dos cinemas africanos, com suas guerras civis, penúrias sociais e chefes de gangues, e mesmo das produções sul-asiáticas. Queremos conhecer o outro, contanto que o retrato reafirme nossa hegemonia enquanto organização social. Aceitamos a representação que nos faça nos sentir melhor conosco.
Hoje, o fetiche da miséria não precisa recorrer às cores fortes e peles brilhosas de Cidade de Deus e Quem Quer Ser um Milionário?. O comedimento educado e pacífico pode soar igualmente condescendente, ou paternalista, em relação aos dilemas alheios. Por isso, as linguagens mais ousadas (o terror, a fantasia, a comédia grotesca, o exagero, as paródias) têm obtido mais sucesso na busca por um formato tão disruptivo quanto o conteúdo que elas se propõem a representar. Para a denúncia de uma violência estrutural, faz-se necessário encontrar uma forma igualmente violenta. A pobreza que agrada aos olhos e desperta pequenas lágrimas de canto de olho dificilmente constituiria uma forma interessante de cinema político em pleno 2024.
Por isso, Rumo a uma Terra Desconhecida soa luxuosamente anacrônico. Trata-se de um cinema impecável, porém, ao mesmo tempo, incapaz de dialogar com a desigualdade estampada em imagens. Fosse três décadas atrás, ganharia os maiores prêmios em Cannes. Atualmente, revela o abismo separando as pesquisas estéticas contundentes dos jovens criadores, e esta arte da miséria gentil, da exploração cordial feita para agradar aos olhos e as consciências das plateias europeias.
PS: A cópia apresentada aos críticos, durante a Mostra de São Paulo, apresenta sérios problemas de legendas. Foi obviamente traduzida a partir do inglês, como de costume nestes casos, porém aparenta ter sido efetuada sem o suporte das imagens, apenas do texto transcrito. Quando o personagem negocia o troco (“change”) em um café, a legenda traduz como “mudança”. Ao falar de um bandido tentando se dar bem (“score”), utiliza o verbo “marcar”, mais apropriado ao esporte. Ainda batiza o filme de Em Rumo à uma Terra Desconhecida (sic). Espera-se que esta versão não seja definitiva.