Ela acredita na filosofia. Sara (Seret Scott) é uma jovem professora universitária, cujos dias são dedicados a grandes princípios abstratos. Sua nova pesquisa diz respeito à experiência extática, para além dos referenciais religiosos. Disciplinada e analítica, esta mulher atravessa as semanas lendo livros, dando cursos e corrigindo provas. Ela também procura conter o furor constante do marido, um pintor em busca de reconhecimento popular e financeiro.
Ele acredita na arte. Victor (Bill Gunn) pinta quadros de grandes proporções, enquanto reflete sobre melhor maneira de atingir uma expressão mais pura infantil, e menos figurativa em suas criações. Apaixonado pela beleza das mulheres, relaciona-se com frequência com suas modelos, levando-as inclusive para casa, em frente à esposa, que se conformou com os gostos do artista. Esta seria uma parte indissociável do processo criativo dele. Paciência.
Sara pesquisa o êxtase que transborda em Victor, e que ela mesma desconhece em sua rotina. Victor almeja um grau de refinamento intelectual presente em Sara, e que ele não domina. Eles se completariam, por uma perspectiva romântica, ou então seriam incompatíveis, pelo prisma mais niilista. De qualquer modo, orquestram-se em chaves antagônicas: yin e yang. Estão juntos há dez anos, num relacionamento esfriado, conveniente, desprovido de paixão. São incapazes de fornecer qualquer surpresa um ao outro.
A diretora Kathleen Collins, falecida prematuramente, fez deste projeto uma trajetória de emancipação através do equilíbrio, percebido como indispensável, entre o conhecimento e as sensações.
Sem Chão explora este embate entre homem e mulher, e entre arte e filosofia, pela perspectiva da protagonista negra. Vale dizer que este é um dos primeiros longas-metragens norte-americanos dirigidos por uma cineasta negra, concentrando-se num elenco quase inteiramente negro (os personagens brancos são aceitos na condição de coadjuvantes, a exemplo da mulher porto-riquenha). Eles circulam em ambientes de classe média e média-alta, debatendo amores e relacionamentos. A questão racial está pacificada, e jamais se converte em conflito.
A diretora Kathleen Collins, falecida prematuramente, fez deste projeto uma trajetória de emancipação através do equilíbrio, percebido como indispensável, entre o conhecimento e as sensações. Falta arte à professora intelectual, que aceita o convite para gravar um longa-metragem amador, no qual interpreta a “negra trágica”, expoente de um cinema mudo fictício — uma “Mulher Melancia”, como batizaria Cheryl Dunye em 1996. Sem interesse inicial pela atuação, Sara acaba convencida de investir sua energia em uma atividade diferente — qualquer atividade diferente. Não se transforma em atriz, nem artista. Entretanto, adquire a vitamina que lhe faltava ao organismo.
No filme-dentro-do-filme, a heroína acostumada às cores sóbrias e roupas discretas experimenta as blusas justas, coloridas, o cabelo solto, a maquiagem exagerada e a arma na mão. Brinca de ser outra pessoa, exercício que desempenha certa função terapêutica. Collins retira a mulher de uma melancolia doce e triste (as luzes queimadas, sempre em fim de tarde, naqueles minutos que antecedem a noite) para conceber um palco, um tablado todo seu, em plena luz do dia. Sara, enfim, brilha.
Sem Chão é movido pela generosidade em relação à personagem, e por um senso lúdico de enquadramentos e linguagem. A direção de fotografia brinca com os close-ups que se afastam, se abrem, e, aos poucos, revelam outros personagens ao lado daquele, cuja presença altera nossa interpretação da cena. Imagina o encontro com um homem-fantasma (ocupando o papel inesperado de par romântico), além de dois alunos que elogiam, sucessivamente, o marido desta acadêmica que nem sequer portava uma aliança. A magia e o realismo fantástico estão logo ali, convidando esta Alice a desbravar, enfim, o país das maravilhas.
Alguns aspectos podem soar problemáticos, ou talvez anacrônicos segundo os olhares do século XXI. O retrato da garota porto-riquenha se rende a estereótipos, e está longe de ser elogioso. A sororidade não constitui um objetivo desta obra. O projeto de ficção do aluno cineasta nunca chega a nenhum ponto específico — é difícil acreditar que ele esteja realmente filmando algo, com uma finalidade precisa. Nunca descobrimos qual o status de Sara no meio acadêmico, nem o alcance intelectual de seus textos. Os personagens ocupam funções narrativas precisas (o marido, o aluno, o pretendente, etc.), alheio ao aprofundamento em contradições e ambiguidades.
Mesmo assim, a narrativa assume aos poucos o caráter de fábula, que traz certa leveza ao tom protocolar inicialmente. Era uma vez a professora tímida e psicorrígida que descobriu o sexo, o cinema e a autonomia contra um marido discretamente abusivo. A heroína consegue exteriorizar seus sentimentos e sensações — logo ela, para quem todo conhecimento precisaria ser internalizado e refletido. Certa noite, Sara confessa o desejo de falar como as mulheres negras do gueto, apenas para incomodar os colegas pedantes. No final, conquista certo equilíbrio entre a intelectualidade e o aspecto mais pulsional, irrefletido.
O longa-metragem se desenvolve para a protagonista, no intuito de observá-la mudar e crescer. Reflete uma perspectiva invariavelmente otimista, sem precisar anteriormente filmar o trágico ou o catártico para reforçar este desfecho. A vida de Sara era tediosa, inerte, até encontrar a fagulha que lhe fará se mover, em algum momento posterior ao término da narrativa. Collins acredita no desenvolvimento da luta feminina, evitando saídas mágicas e lições de autoajuda.
A autora equilibra, como raras vezes se encontra no cinema popular, uma narrativa leve e acessível com a progressão microscópica de personagens rumo ao final que, pensando em retrospecto, não poderia ser diferente. Há uma maestria discreta nesta pequena comédia dramática, raramente estudada dentro da história do cinema, ou considerada por seus méritos estéticos e narrativos — uma consequência do mesmo machismo e racismo que impediam a filósofa de evoluir. Kathleen, assim, encontra-se em Sara. E todo autor não seria, em certa medida, o reflexo de seu personagem?