Serra das Almas (2024)

Balada dos prisioneiros

título original (ano)
Serra das Almas (2024)
País
Brasil
gênero
Drama, Ação, Policial
duração
121 minutos
direção
Paulo Caldas
elenco
Julia Stockler, Mari Oliveira, Ravel Andrade, Davi Santos, Jorge Netto, Pally Siqueira, Vertin Moura
visto em
48ª Mostra de São Paulo (2024)

O diretor Lírio Ferreira começa seu filme no meio da ação, literalmente. Antes de apresentar qualquer personagem, prefere imergir o espectador numa fuga onde diversas figuras gritam a plenos pulmões. Um carro sai desgovernado; uma garota está ferida; os ladrões brigam entre si. A imagem chacoalha, a trilha sonora picota a cena ao máximo, e uma trilha sonora em rock altíssimo promove a saturação dos sentidos, em questão de minutos. Iniciamos o percurso no caos, na desordem, e no prazer de perturbar a compreensão.

Aos poucos, no entanto, a cena respira, e os protagonistas se esclarecem ao espectador. Trata-se de uma obra coral, com sete ou oito protagonistas alternando-se no comando da narrativa e do ponto de vista. Através de um mecanismo bastante convencional — os flashbacks alternados com o presente, avançando na temporalidade até chegarem ao golpe inicial —, Serra das Almas fornece as respostas necessárias a respeito das motivações e conflitos. A narrativa se acalma, as vozes adotam certa ponderação. Uma ou outra pessoa ainda enlouquecerá ao longo da aventura, porém, em geral, trata-se de um faroeste baseado na espera.

Isso porque bandidos e reféns isolam-se na cidade do título, um local afastado no interior de Pernambuco. Enquanto a jornalista Samanta (Julia Stockler) e sua estagiária (Pally Siqueira) permanecem trancadas em um cômodo, os donos da casa (Jorge Neto e Mari Oliveira), a dupla de bandidos (Ravel Andrade e David Santos) e um anônimo carregado junto, por um acaso da fuga (Vertin Moura) percebem que se encontram igualmente presos naquele lugar. Afinal, para onde poderiam ir, sem dinheiro, e perseguidos pela polícia? Como não se trata de um sequestro oficial, nem mesmo teriam a quem pedir resgate.

Dois ladrões, duas jornalistas, um anônimo e um casal em crise estão presos no meio do nada. Nesta descrição, propícia ao início de uma piada, paira o desejo de efetuar a crônica de um Brasil abandonado, devorando a si mesmo.

O filme interessa enquanto impasse. Trata-se de um teatro do absurdo, capaz de condensar a tensão e a monotonia, o perigo e a camaradagem. Descobrimos os laços entre eles, relaxamos com as excelentes tiradas cômicas envolvendo as calças curtas de um ladrão, a predileção de outro por suco de caixinha, e a fascinação de um terceiro pelos desenhos animais infantis, porque, em suas palavras, “nada acontece”. O tédio representa o avesso daquilo que se esperaria de uma emboscada envolvendo pedras preciosas, políticos corruptos e jornalistas munidos de informações sigilosas.

Enquanto o texto se prende à melancolia de existências sem perspectiva, alça belos voos. “Pra onde a gente vai, a gente carrega nossos fantasmas com a gente”, constata um personagem. Ferreira constrói um senso palpável de afetos, fruto de um elenco tão versátil quanto disposto ao jogo não-naturalista. Os atores compreendem o limite da fábula e da paródia, entre drama, faroeste, filme de ação e suspense policial. Retiram o peso de uma composição naturalista, enquanto evitam fazer chacota de seus personagens. Assim, evitam sublinhar sotaques e gags. Deixam que o teor insano dos acontecimentos se encarregue da comicidade.

No entanto, observada com um mínimo de atenção, a história está repleta de inconsistências e conveniências que enfraquecem a imersão do espectador. Por que estas mulheres, supostamente inteligentes e fortes, nunca procuram uma maneira de fugir, ou de formar alianças propícias à sua escapatória? As heroínas apenas aguardam no quarto, hora após hora, aceitando a situação. Como a jovem que perdeu muito sangue, e aparentemente possui uma ferida aberta, nunca demonstra dor ou fraqueza? Por que a câmera evita a todo custo nos mostrar o machucado, que representaria um elemento essencial de tensão?

Os problemas persistem. Um gângster espera os instantes finais para revelar suas tatuagens e seu histórico de crimes; o amigo enlouquece rápido demais e sai disparando a esmo; a esposa presencia a morte do marido a poucos metros da execução, sem ser percebida pelos assassinos. O imbróglio das pedras roubadas é praticamente esquecido, posto que nenhum deles possui objetivos concretos pós-golpe. Passam os dias na casa, sem saberem o porquê, nem quais seriam os próximos passos deste plano irrefletido. Onde foram parar as imagens gravadas pelo cinegrafista? E o repórter experiente, que fugiu da cena do crime? Mistério.

Serra das Almas melhora quando reconhece a liberdade de se desprender do real. A presença inesperada da vaca perseguidora, os planos aéreos na casa à la Cláudio Assis e a chegada dos sujeitos mascarados transmitem um nível de loucura e fervor que beneficiam o projeto em constante busca por potência. No entanto, a caricatura simplória do político corrupto, e as passagens de tempo protocolares (basicamente, todos mudaram de corte de cabelo, o que permite distinguir presente e passado) não transmitem uma pesquisa conceitual aprofundada. 

O resultado se equilibra neste meio-termo entre a seriedade e o despojamento, entre a imersão no mundo do crime e a paródia dos gêneros, aplicados ao sertão nordestino. A obra dispensa qualquer mensagem particularmente relevante a respeito da criminalidade, das relações entre homens e mulheres e da desigualdade brasileira. No entanto, quando assume o aspecto lúdico de uma brincadeira entre arquétipos, interpretados por grandes atores, atinge seus melhores momentos. Dois ladrões, duas jornalistas, um anônimo e um casal em crise estão presos no meio do nada. Nesta descrição, propícia ao início de uma piada, paira o desejo de efetuar a crônica de um Brasil abandonado, devorando a si mesmo.

Serra das Almas (2024)
6
Nota 6/10

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