O diretor Lírio Ferreira começa seu filme no meio da ação, literalmente. Antes de apresentar qualquer personagem, prefere imergir o espectador numa fuga onde diversas figuras gritam a plenos pulmões. Um carro sai desgovernado; uma garota está ferida; os ladrões brigam entre si. A imagem chacoalha, a trilha sonora picota a cena ao máximo, e uma trilha sonora em rock altíssimo promove a saturação dos sentidos, em questão de minutos. Iniciamos o percurso no caos, na desordem, e no prazer de perturbar a compreensão.
Aos poucos, no entanto, a cena respira, e os protagonistas se esclarecem ao espectador. Trata-se de uma obra coral, com sete ou oito protagonistas alternando-se no comando da narrativa e do ponto de vista. Através de um mecanismo bastante convencional — os flashbacks alternados com o presente, avançando na temporalidade até chegarem ao golpe inicial —, Serra das Almas fornece as respostas necessárias a respeito das motivações e conflitos. A narrativa se acalma, as vozes adotam certa ponderação. Uma ou outra pessoa ainda enlouquecerá ao longo da aventura, porém, em geral, trata-se de um faroeste baseado na espera.
Isso porque bandidos e reféns isolam-se na cidade do título, um local afastado no interior de Pernambuco. Enquanto a jornalista Samanta (Julia Stockler) e sua estagiária (Pally Siqueira) permanecem trancadas em um cômodo, os donos da casa (Jorge Neto e Mari Oliveira), a dupla de bandidos (Ravel Andrade e David Santos) e um anônimo carregado junto, por um acaso da fuga (Vertin Moura) percebem que se encontram igualmente presos naquele lugar. Afinal, para onde poderiam ir, sem dinheiro, e perseguidos pela polícia? Como não se trata de um sequestro oficial, nem mesmo teriam a quem pedir resgate.
Dois ladrões, duas jornalistas, um anônimo e um casal em crise estão presos no meio do nada. Nesta descrição, propícia ao início de uma piada, paira o desejo de efetuar a crônica de um Brasil abandonado, devorando a si mesmo.
O filme interessa enquanto impasse. Trata-se de um teatro do absurdo, capaz de condensar a tensão e a monotonia, o perigo e a camaradagem. Descobrimos os laços entre eles, relaxamos com as excelentes tiradas cômicas envolvendo as calças curtas de um ladrão, a predileção de outro por suco de caixinha, e a fascinação de um terceiro pelos desenhos animais infantis, porque, em suas palavras, “nada acontece”. O tédio representa o avesso daquilo que se esperaria de uma emboscada envolvendo pedras preciosas, políticos corruptos e jornalistas munidos de informações sigilosas.
Enquanto o texto se prende à melancolia de existências sem perspectiva, alça belos voos. “Pra onde a gente vai, a gente carrega nossos fantasmas com a gente”, constata um personagem. Ferreira constrói um senso palpável de afetos, fruto de um elenco tão versátil quanto disposto ao jogo não-naturalista. Os atores compreendem o limite da fábula e da paródia, entre drama, faroeste, filme de ação e suspense policial. Retiram o peso de uma composição naturalista, enquanto evitam fazer chacota de seus personagens. Assim, evitam sublinhar sotaques e gags. Deixam que o teor insano dos acontecimentos se encarregue da comicidade.
No entanto, observada com um mínimo de atenção, a história está repleta de inconsistências e conveniências que enfraquecem a imersão do espectador. Por que estas mulheres, supostamente inteligentes e fortes, nunca procuram uma maneira de fugir, ou de formar alianças propícias à sua escapatória? As heroínas apenas aguardam no quarto, hora após hora, aceitando a situação. Como a jovem que perdeu muito sangue, e aparentemente possui uma ferida aberta, nunca demonstra dor ou fraqueza? Por que a câmera evita a todo custo nos mostrar o machucado, que representaria um elemento essencial de tensão?
Os problemas persistem. Um gângster espera os instantes finais para revelar suas tatuagens e seu histórico de crimes; o amigo enlouquece rápido demais e sai disparando a esmo; a esposa presencia a morte do marido a poucos metros da execução, sem ser percebida pelos assassinos. O imbróglio das pedras roubadas é praticamente esquecido, posto que nenhum deles possui objetivos concretos pós-golpe. Passam os dias na casa, sem saberem o porquê, nem quais seriam os próximos passos deste plano irrefletido. Onde foram parar as imagens gravadas pelo cinegrafista? E o repórter experiente, que fugiu da cena do crime? Mistério.
Serra das Almas melhora quando reconhece a liberdade de se desprender do real. A presença inesperada da vaca perseguidora, os planos aéreos na casa à la Cláudio Assis e a chegada dos sujeitos mascarados transmitem um nível de loucura e fervor que beneficiam o projeto em constante busca por potência. No entanto, a caricatura simplória do político corrupto, e as passagens de tempo protocolares (basicamente, todos mudaram de corte de cabelo, o que permite distinguir presente e passado) não transmitem uma pesquisa conceitual aprofundada.
O resultado se equilibra neste meio-termo entre a seriedade e o despojamento, entre a imersão no mundo do crime e a paródia dos gêneros, aplicados ao sertão nordestino. A obra dispensa qualquer mensagem particularmente relevante a respeito da criminalidade, das relações entre homens e mulheres e da desigualdade brasileira. No entanto, quando assume o aspecto lúdico de uma brincadeira entre arquétipos, interpretados por grandes atores, atinge seus melhores momentos. Dois ladrões, duas jornalistas, um anônimo e um casal em crise estão presos no meio do nada. Nesta descrição, propícia ao início de uma piada, paira o desejo de efetuar a crônica de um Brasil abandonado, devorando a si mesmo.