Alerta: o texto contém pequenos spoilers.
O pequeno Takuya nunca se destacou nos estudos, no hóquei, nem entre os amigos de escola. Ele gagueja, assim como o pai, o que reforça a timidez e diminui a interação social. O menino recebe atenção apenas moderada dos familiares. Até ele descobrir o prazer pela patinação artística. Cresce rapidamente no esporte, passa a competir. Treina e ensaia incessantemente. Certo dia, numa competição, sua parceira de duplas não aparece. Takuya desiste do esporte no dia seguinte.
Arakawa, o professor do menino, demonstra pouco prazer no ensino. No entanto, uma chama reacende neste antigo esportista ao perceber o talento do aluno tímido. Ele passa a treinar sem ganhar salário, fora dos horários habituais. Encerrada a dupla, o docente percebe que não existe mais nenhum aluno para ensinar na cidade inteira. Nenhunzinho. É acusado de crimes horrendos, dos quais nunca se defende, nem exige justiça ou qualquer forma de reparação. O homem simplesmente desiste. Faz as malas e parte.
Um casal estável e duradouro tem sua primeira crise, na cama. Deduzem que o futuro pode ser difícil, com poucas possibilidades profissionais. No dia seguinte, o relacionamento foi rompido, sem lágrimas nem esforço de nenhuma parte. Deixa pra lá; melhor seguir em frente. Sakura, a garota desistente da dupla de patinação artística, sempre foi fascinada (profissional e amorosamente) pelo professor. Ao descobrir um detalhe de sua vida, o abandona de vez. Nunca mais deseja vê-lo. E que ele nunca mais se aproxime dela. Esteja dito.
Uma obra delicada, gentil, acolhedora. Por isso mesmo, a chegada do chocante terço final (e de sua banalização enquanto conflito) surpreende.
Sol de Inverno (My Sunshine, no título internacional) é um drama bastante curioso. Durante dois terços da narrativa, não existe um único conflito propriamente dito. O menino quer patinar, então patina; a colega sonha em crescer no esporte, então cresce; o professor deseja transmitir seu amor pelo esporte aos alunos, e assim o faz. Os tradicionais obstáculos de filmes hollywoodianos — bullying dos colegas, proibição da diretoria da escola, falta de dinheiro para pagar o curso — são abandonados. Os personagens vivem felizes, conquistando tudo o que desejam.
Entretanto, na reta final, o diretor e roteirista Hiroshi Okuyama introduz seu único conflito, tão pontual quanto catastrófico na vida dos personagens. Descobre-se (em silêncio, à distância) a homossexualidade do professor. O próprio filme aborda esta sexualidade com tamanha discrição (ou vergonha, como preferir) que durante metade do convívio entre os dois homens, eles ainda podem ser confundidos com colegas de quarto. Confrontado ao perigoso amálgama entre homossexualidade e pedofilia, Arakawa não faz absolutamente nada. Retira-se do ringue uma segunda vez. Perde por W.O.
Existe um notável problema neste projeto, que nunca sabe ao certo onde situar seu ponto de vista, nem qual espécie de mensagem planeja veicular através do trio central. Ele enxergaria o mundo pela perspectiva do pequeno Takuya? Da obstinada Sakura? Do gentil e apaixonado Arakawa? De nenhum deles, observando-os de maneira externa? Ou de todos ao mesmo tempo? A estrutura narrativa oscila entre estas esferas, indefinidamente. Ao final, por mais carinhosos que sejam, os personagens permanecem misteriosos a respeito de seus desejos e motivações. Não os conhecemos de fato.
Felizmente, até a chegada do rocambolesco e opaco terço final, Sol de Inverno se desenvolve com considerável coesão. O cineasta poderia ter optado por um raro longa-metragem desprovido de conflitos, ignorando os clichês habituais do drama de esporte, e também das histórias de professores inspiradores. Poderia simplesmente acompanhar a felicidade de três pessoas patinando e estudando juntas, ajudando umas às outras. Okuyama inclusive faz questão de demonstrar que são os atores, de fato, patinando em longas cenas abertas e sem cortes. Nota-se a preocupação em fazer real, em não falsear o esporte, nem a dança. A paixão pelo movimento dos corpos e pelo cenário do ringue transparece graças à mise en scène.
Além disso, o diretor demonstra verdadeiro prazer de composição de imagens, através de planos fixos e uma janela próxima do quadrado (o formato de imagem 1.33:1). Ora a direção de fotografia centraliza corpos e objetos (o carro, o gol do jogo de hóquei), ora aposta em formas anguladas em relação à barra de madeira do ringue e à sala de aula. Os criadores insistem em inserir os personagens no espaço, tornando-os indissociáveis à cidade vazia e congelante, que condiciona suas expressões esparsas de afeto.
A estética se embala numa percepção de doçura, graças às cores pastéis que mudam de maneira quase aleatória. Adota-se uma liberdade propícia à fantasia quando a noite rosa clara cede espaço à manhã azul-bebê. Num corte simples da montagem, sem saltos temporais, a imagem se revela laranja-salmão. A trilha sonora, pontual, aposta em recursos lúdicos e infantis, que vão do dedilhado de cordas aos assobios e o cantarolar melódico. As luzes invadem o ringue de patinação em feixes esparsos, leitosos. Durante os treinos, estes personagens (temporariamente) apaixonados pelo esporte parecem transpostos a um mundo mágico.
Por falta de um termo mais científico, pode-se descrever Sol de Inverno como um filme fofo — este foi o termo mais repetido por colegas de imprensa, na saída da sessão da Mostra de São Paulo. Sim, trata-se de uma obra delicada, gentil, acolhedora, sobretudo na belíssima cena do trio brincando e dançando sobre o lago congelado. Por isso mesmo, a chegada do chocante terço final (e de sua banalização enquanto conflito) surpreende. De repente, encontramo-nos diante de um filme totalmente distinto, incompatível com as luzes e cores de algodão-doce.
O roteiro oferece dilemas graves no momento em que não tem mais tempo de desenvolvê-los, e então simplesmente suspende a narrativa. O resultado sofre de sério desequilíbrio em virtude desta guinada — o que não retira seus méritos durante a hora de projeção que a antecede. Ressente-se a falta de um produtor capaz de costurar a narrativa, e impedir que se bifurque de maneira tão perigosamente ambígua (a condescendência vale, inclusive, em relação à homofobia das mulheres desta trama). Resta encontrar uma estética capaz de abraçar tanto o esplendor do esporte quanto a violência subsequente. O projeto cumpre apenas um destes requisitos.