Um detetive de passado obscuro. Uma, ou melhor, duas loiras fatais, de objetivos suspeitos. Um homem desaparecido. Um grupo de mafiosos, um clube de pessoas ricas. Políticos corruptos, policiais displicentes, capangas pouco confiáveis. Sombras de um Crime mergulha no imaginário do filme noir, movido por uma crença fatalista, e um tanto romantizada, da delinquência. Aqui, qualquer um pode pegar sua arma e acertar contas com seus desafetos — nada que os policiais não possam ignorar, mediante dinheiro ou sexo.
Seria possível, sem grandes dificuldades, adaptar este cenário ao cinema contemporâneo, do século XXI, com suas relações específicas de linguagens, suas referências políticas e culturais, sua forma muito distinta de dialogar com o público ultraconectado. Brian de Palma e os irmãos Coen, por exemplo, tiveram experiências bem-sucedidas neste sentido com Dália Negra e O Homem que Não Estava Lá, respectivamente. Em ambos os casos, o noir servia de base para a subversão autoral das regras do gênero.
Neil Jordan, por sua vez, reproduz o filme noir como se estivesse décadas atrás. Certo, o projeto é filmado em digital de alta qualidade, com uma mobilidade de câmera que apenas o cinema pós-anos 2000 permitiria. De resto, o autor parte do livro de John Banville, The Black-Eyed Blonde, para investir numa trama girando em torno da sociedade de antigamente, com um ponto de vista de antigamente. Mais do que uma nostalgia contemporânea, existe a vontade de voltar ao passado, ao invés de homenageá-lo pela perspectiva atual. O autor recusa o presente em seu mergulho ao passado.
Isso implica numa forma muito curiosa de construir personagens e relações. Aqui, importa pouco quem os personagens são, de onde vêm, e quais seriam seus desejos reais. Contanto que pareçam sombrios, dúbios, vagamente erotizados e mal-intencionados, terão cumprido o seu papel. O detetive Philip Marlowe possui um olhar disperso, cansado, de pouco interesse em relação às pessoas que o abordam. “Estou velho demais para isso”, confessa a si próprio, num gesto que talvez seja confundido com a expressão do próprio Liam Neeson dentro do cinema de ação.
Os personagens podem ser sarcásticos, mas o filme não o é. Neil Jordan conduz com uma seriedade sepulcral a investigação fraca, repleta de incongruências e conveniências narrativas.
Através dos diálogos, um personagem sem nome afirma que Marlowe foi perseguido várias vezes pela polícia. Não parece — pelo menos, nenhum indício do roteiro permite pensar nisso. Ele é procurado por Clare Cavendish (Diane Kruger) por supostamente ser muito astucioso e observador. Ora, nada adiante sugere tais traços nele. Na hora de lutar, o homem desfere golpes mortais em três indivíduos fortes. Nada antecipava a habilidade de combate. A todo momento, ele repete: “Sou apenas um simples trabalhador”. De onde vêm tamanha modéstia, ou senso de classe?
Até o final, o protagonista resta um sujeito opaco. As provas e suspeitos vêm até ele, ao invés de ser obrigado a procurar por provas e suspeitos. Assim, pode ser um detetive excepcional ou um profissional péssimo — isso não traria nenhuma diferença à narrativa. Desconhecemos os motivos que o levam a praticar esta atividade, e qual relação afetiva mantém com seu trabalho. O herói não possui amores, amigos, familiares, objetivos, nem métodos particulares ou “habilidades especiais”. Ele se limita a um corpo em perpétuo deslocamento, de uma cena à outra, desafetado, esperando que o destino resolva, por si só, o dilema do amante sumido.
Os demais personagens sofrem de igual imprecisão. A cada cena, o detetive encontra uma nova pessoa que lhe traz informações preciosas (informando, ao mesmo tempo, o espectador). Explicam onde estaria o suspeito, por qual motivo, carregando qual objeto. Marlowe consente, e segue em frente, até o próximo mensageiro (“Fair enough”, ele responde, diversas vezes). As duas mulheres fatais, mãe e filha, brigam por motivos pouco claros (“Ela sempre quer o que eu tenho”, reclamam ambas), possuem ambições imprecisas, e traços de personalidade indistintos. Atacam-se de maneira mordaz, em falas sarcásticas, assim como fazem todos os personagens do longa-metragem, sem exceção.
Talvez aí resida o principal problema em Sombras de um Crime: a aposta excessiva na sobrecarga de diálogos — todos eles muito, muito ruins. O roteiro acredita num sarcasmo à moda antiga, mistura de teatralidade e vertente literária. Isso significa que as cenas consistem no encontro entre duas ou três pessoas, conversando sem parar. Ora, todos falam da mesma maneira, com igual carga de provocação, empregando as mesmas referências e vícios de linguagem. A distinção de personalidades e maneiras de se comunicar deveria ser a primeira preocupação de um roteiro minimamente profissional.
Além do amálgama, estas figuras espertinhas se expressam em frases difíceis de aceitar, em qualquer contexto social ou temporal que se adote. “Um quebra-cabeça tem muitas peças, você nunca sabe o que vai encontrar. Talvez encontre um dragão e precise combatê-lo”. “Tenho mais dinheiro do que a rainha de Sabá e sou uma atriz decadente muito feliz”. “O que tem neste livro? / Palavras. / Nada de drogas? / Apenas palavras. / Nico era bom com palavras”. “Se você não se comportar, as pessoas vão te massacrar, assim como fazem com a gramática”.
Estas são apenas algumas das tiradas que se consideram inteligentíssimas, sem perceberem o absurdo e a vacuidade de suas ideias. Dezenas de exemplos semelhantes poderiam ser extraídos do roteiro. Há um grau de artificialidade pomposa e anacrônica que jamais se assume como tal, nem possui um distanciamento irônico, cômico ou surrealista. Em outras palavras, os personagens podem ser sarcásticos, mas o filme não o é, pelo contrário. Neil Jordan conduz com uma seriedade sepulcral a investigação fraca, repleta de incongruências e conveniências narrativas.
Por isso, os atores se esforçam, mas não possuem material para elaborar composições relevantes. Liam Neeson, Diane Kruger e Jessica Lange estão perdidos em cena, hesitando entre se levarem a sério demais, adotarem um ar desafetado em alguns casos ou exageradamente intenso em outros instantes. A situação é pior para coadjuvantes como Adewale Akinnuoye-Agbaje, Danny Huston e Alan Cumming, condenados em papéis claramente cômicos, porém levados a sério. Há um grave problema de tom, fruto de uma produção de aparência incoerente e conflituosa.
É difícil pensar que os 37 produtores executivos (sim, 37) e os seis produtores tenham concordado, do início ao fim, com o andamento do projeto. O resultado remete a uma obra mal-costurada, problemática em sua realização, do tipo que se finaliza como pode, e se lança nos cinemas na esperança de que poucas pessoas o vejam de fato. Algo que se conclui porque é preciso colocar um ponto final no filme e seguir adiante. Nem todas as empreitadas têm sucesso, afinal. Ainda reside, na aventura, um ranço racista, xenofóbico e machista que acentua o amargor do discurso. Por este ponto de vista, o cinema é feito para malandros; o México é composto apenas por bandidos e mulheres crescem na carreira unicamente caso durmam com os produtores.
Nada disso será contextualizado, questionado ou criticado, é claro. Jordan e seu exército de produtores podem fazer filmes a respeito de qualquer época que desejarem, inclusive mergulhando em séculos e décadas quando o machismo vigorava de maneira menos policiada pelas leis e pela sociedade. No entanto, o resultado ainda será uma produção de 2023, voltada ao público de 2023, com as ferramentas, o dinheiro e a estrutura de exibição existente nos nossos dias. Atualmente, nem o cinema, nem a sociedade comportam uma iniciativa tão reacionária.