Suçuarana (2024)

O interior das mulheres

título original (ano)
Suçuarana (2024)
país
Brasil
gênero
Drama
duração
84 minutos
direção
Clarissa Campolina, Sérgio Borges
elenco
Sinara Teles, Carlos Francisco, Tony Stark, Guarda de Moçambique Nossa Senhora do Rosário e Santa Efigênia de Ouro Preto, Hélio Ricardo, Andréia Quaresma, Elba Rocha, Rafael Botero, Docy Moreira, Kelly Criffer, Amora Ferreira Giorni, Lenine Martins
visto em
57º Festival de Brasília (2024)

Dora (Sinara Teles) é uma mulher de lugar nenhum. Vive há mais de dez anos pelas estradas brasileiras, vagando de uma cidade para a próxima. Ela não possui família, filhos, nem amigos que a mantenham presa a qualquer canto. Até mesmo o cachorro que decide segui-la soa como um inconveniente do qual a heroína tenta se desfazer. Aos passantes que cruzam o seu caminho, ela afirma procurar Suçuarana, sua Eldorado particular — uma terra mencionada pela mãe falecida, e de existência duvidosa. No entanto, a viajante precisa de uma justificativa, ainda que simbólica, para continuar em movimento.

O longa-metragem efetua a crônica de um Brasil tão afetuoso quanto parado no tempo. Não há menção específica de datas, porém, a trama se situa em período pré-tecnologias digitais (o que explica a ausência de celulares, ou a opção de digitar “Suçuarana” no Google Maps). Em especial, não existe trabalho decente para ninguém: estas pessoas abandonadas pela sociedade vivem de pequenos bicos, roubando metais de uma usina fechada, ou cuidando de pequenos bares. Em meio aos colegas de passagem, nenhum afeto resulta duradouro ou marcante.

O foco reside nas mulheres. Os diretores Clarissa Campolina e Sérgio Borges se concentram nas operárias, as mães solo, as donas de botecos. Elas se ajudam menos por uma grandiosidade moral do que por conveniência, ou pelo interesse numa conversa decente durante uma noite, antes de cada uma voltar aos seus afazeres no dia seguinte. Ao invés das jornadas reparadoras e dos golpes do acaso (formando grandes amizades e romances), os autores privilegiam um road movie dominado pelo imperativo do movimento. Pouco importa onde elas vão chegar, contanto que não parem jamais.

Uma versão contemporânea dos nossos filmes de sertão de quatro ou cinco décadas atrás. Trata-se de um “interior profundo” próximo das distopias, não fosse o olhar calmo e crônico dos criadores.

Assim, o drama apresenta uma versão contemporânea dos nossos filmes de sertão de quatro ou cinco décadas atrás. O imaginário de um Brasil que desconhece a si próprio, povoado por migrantes climáticos ou por motivos econômicos, retorna nesta fronteira entre o urbano e o campestre. Trata-se de um “interior profundo” próximo das distopias, não fosse o olhar calmo e crônico dos criadores. Borges e Campolina imaginam um contexto no qual as ações sempre ocorreram desta maneira, e tendem a continuar assim. Nada indica que a situação de Dora melhorará ou piorará a seguir. 

Felizmente, o longa-metragem evita admirar esta heroína com piedade por sua solidão, ou enxergando nela uma guerreira contra as adversidades. Sim, esta mulher invisível dorme pelos cantos, porém, não passa fome, nem se queixa. Não sofre com a saudade de um amor antigo, nem as recordações pesadas da mãe. A excelente Sinara Teles diminui o pathos para privilegiar uma expressão corporal confortável com a marginalidade, calejada diante dos dilemas encontrados. Ao ser confrontada com uma situação de perigo, sabe como se safar. Ela fica em choque com a violência, mas não parece ter vivenciado esta circunstância pela primeira vez.

É compreensível que a diretora de Girimunho e o diretor de A Torre flertem, aqui e acolá, com uma poesia discreta. O cachorro se torna o símbolo principal do flerte com o realismo fantástico: ainda que Dora se desfaça do bicho, ele continua encontrando sua tutora, dias mais tarde. Parece sobreviver ao frio, à fome, aos acidentes no percurso. O cão se torna uma proposta de raízes e afeto, que a mulher dispensa sempre que alguém lhe estende a mão — o que vale também para o personagem interpretado por Carlos Francisco. Ela parece temer a dependência afetiva, a decepção face às expectativas que possa criar. Melhor contar apenas consigo mesma. Talvez Dora dispense o cão Encrenca por enxergar nele um lado seu que rejeita.

Como se percebe, Suçuarana move-se em ritmo melancólico, contemplativo, ainda que jamais seja arrastado. A montagem impecável de Luiz Pretti permite que conheçamos apenas o necessário das situações e personagens, capazes de conservar seus mistérios sem soarem herméticos, nem inacessíveis. Deste modo, podemos projetar nas frestas propositais o nosso imaginário de solidão. O rico trabalho sonoro de Pablo Lamar indica tremores, ruídos, dissonâncias por vir. Existe uma sensação palpável de acontecimentos futuros, de choques e conflitos vindouros. Apenas pela estética (a belíssima sequência aérea das paisagens), os criadores sugerem tensão e impedem a monotonia.

Em termos de referências, às vezes Suçuarana lembra até demais Arábia — impressão reforçada pela presença de João Dumans no roteiro, e de Renan Rovida como parte da equipe. Um plano de Dora inclinada sobre a estrada, esperando o tempo passar (ou alguma carona, o que vier primeiro) aproxima-se bastante da imagem semelhante de Aristides de Sousa no filme de 2017. Quando a protagonista reata com Encrenca, a narrativa se aproxima dos percursos indie de Kelly Reichedt (sobretudo Wendy e Lucy e Old Joy), valorizando a deambulação de marginais com seus cachorros, natureza adentro.

No entanto, o filme encontra seu caminho próprio dentro da fortíssima cinematografia mineira, que faz da geografia particular do Estado (a ausência do mar, as longas estradas, o acesso fácil ao norte e ao sul) uma espécie de coração do Brasil — um lugar ideal para se achar e se perder. Dora se revela uma grande personagem cinematográfica, capaz de representar grupos sociais sem se restringir a um exemplo de causa. Graças à grande atriz, ao roteiro sólido e aos tempos fornecidos generosamente por fotografia e montagem, ela se mune de uma subjetividade complexa.

Poucas vezes aparecem, pelos festivais, projetos de tamanha coerência e coesão, onde cada cabeça de equipe (fotografia, montagem, som, direção de arte, direção, elenco) atua em total sintonia com os demais, contribuindo de maneira orgânica ao conjunto sem chamar atenção excessiva a si própria. O som possui seus momentos de fervor, mas logo se acalma; os afetos queer são sugeridos, ainda que dispensadas a seguir; o retorno mágico do cachorro aponta para uma redenção via afeto, igualmente ignorada pelos autores. Suçuarana sabe medir a dose precisa de suas forças, dispensando os excessos e proporcionando uma experiência humana admirável.

Suçuarana (2024)
9
Nota 9/10

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