Tantas Almas (2019) efetua um retrato da violência na Colômbia em 2002 e 2003, quando grupos paramilitares, tacitamente encorajados pelo presidente Uribe, promoveram uma matança de pescadores e agricultores. Inúmeras pessoas foram assassinadas, torturadas, e tiveram seus corpos jogados no rio. Famílias foram vigiadas, controladas, ameaçadas. O justiçamento inconstitucional se tornou a nova regra de execução nas comunidades pobres.
O tema poderia dar origem a um grande suspense policial, com heróis fugindo freneticamente das forças opositoras. É possível imaginar algum astro hollywoodiano correndo floresta adentro, escondendo-se de homens muito malvados que o perseguem. Em paralelo, o gênero poderia se encontrar com o melodrama: pense então em famílias devastadas, chorando a morte dos entes executados a sangue frio por se oporem ao regime. Música triste ao piano, planos próximos e quartos vazios de adolescentes completariam a receita.
Ora, esta coprodução entre Colômbia, Brasil, Bélgica e França foge de todas as armadilhas do sensacionalismo e da chantagem emocional. Para um tema urgente e politicamente perturbador, o diretor Nicolás Rincón Gille oferece uma obra calma, contemplativa, de poucos diálogos. A narrativa não se situa no desabrochar destas práticas criminosas, mas num instante posterior, quando já são conhecidas por todos os moradores do vilarejo. Quando começa a história, os dois filhos de José já foram executados.
Cabe ao protagonista, portanto, encontrar seus corpos e proporcionar a ambos um enterro digno. Afinal, a proibição de resgatar os cadáveres despejados pela natureza, perto de suas casas, constitui simbolicamente uma interdição do luto. Sem corpo, enquanto prova, não há crime das milícias, e paira a possibilidade ínfima de que os filhos ainda estejam vivos em algum lugar. É preciso se deparar com a morte para trabalhá-la psiquicamente e passar adiante. Na procura pelos restos mortais de jovens, José busca em certa medida a si próprio.
Esta investigação constitui o único motor de conflito para o pescador silencioso. Durante quase 140 minutos, ele mergulha nos riachos, perambula pelas matas, indaga nas casas vizinhas, esconde-se de sujeitos com metralhadoras. José (Arley de Jesús Carvallido Lobo) não chora, não se desespera, nem perde a esperança. Ele jamais será descrito como um homem incrivelmente correto, virtuoso, dotado de “habilidades especiais”. Pelo contrário, trata-se de um sujeito comum, do tipo que realmente interessa ao diretor.
O olhar da direção jamais convida o espectador a apenas repudiar e se indignar com a violência (ou seja, passamos longe do panfleto e da fábula moral).
Gille possui um domínio impecável da linguagem cinematográfica para retratar esta jornada de maneira respeitosa. Em primeiro lugar, ele evita os planos próximos dos rostos, deixando de intervir excessivamente nos cenários e nas ações. Os personagens são captados à distância, como espiados por um olhar oculto na mata. Diversas cenas são captadas de um segundo barco, ou nas margens do rio, enquanto José desbrava a correnteza sozinho. O cansaço, a tristeza e o medo são atenuados pelos planos de conjunto que conferem tanto valor ao corpo do protagonista quanto à natureza ao redor.
Em segundo lugar, ele compõe um rico ambiente sonoro em complemento à possível impressão de frieza deste registro distanciado. Tantas Almas transborda de sons da natureza, de ameaças fora de quadro, de pequenas falas à distância. Este é um universo repleto de estímulos e sensações, atingindo um equilíbrio precioso: a estética contemplativa se associa a uma temática sulfurosa. O olhar da direção jamais convida o espectador a apenas repudiar e se indignar com a violência (ou seja, passamos longe do panfleto e da fábula moral), e sim a compreender os aspectos humanos envolvidos.
Para o elenco, o cineasta escolhe indivíduos que de fato moram no local, sem experiência prévia com o cinema. Trata-se de vítimas indiretas dos conflitos, que aceitaram reencenar os fatos para o longa-metragem. Sem a delicadeza da direção, o procedimento soaria perverso, colocando os dedos numa ferida ainda aberta. Ora, Gille exige destas pessoas o corpo presente, uma espécie de entrega despojada e desafetada à ação. O registro cru das caminhadas e conversas transmite uma preciosa sensação de realismo: os personagens parecem de fato habitar o povoado, vestir aquelas roupas, caminhar daquele jeito. Quando nadam contra uma correnteza forte, em plano-sequência, temos a certeza de que já fizeram aquilo inúmeras vezes, e possuem familiaridade com o rio.
Em particular, não existe uma única cena de violência explícita no longa-metragem. Citam-se mortes, mencionam-se corpos e execuções, mas o espectador precisará recorrer a seu imaginário pessoal de tragédias para atribuir uma imagem aos fatos. O cineasta toma a precaução de sugerir o perigo a todo instante, sem necessariamente concretizá-lo para o prazer do espectador, nem para provar a seriedade do que afirma. Há tensão no silêncio; há um perigo invisível e perene em cada cena.
Por trás da aparência de vazio (José navegando rio abaixo), o homem se entrega à possibilidade de morrer em nome da honra familiar e do reencontro com os cadáveres dos filhos. O projeto trabalha, portanto, com uma falsa calmaria, onde os gritos e indignações são calados pela ameaça paramilitar. A postura nunca se confunde com conformismo, nem passividade: o belo roteiro oferece sequências de moradores resistindo, à sua maneira, ao controle das forças armadas. A interação no povoado, à noite, constitui um dos instantes mais potentes do filme.
Aliás, Tantas Almas está repleto de momentos preciosos: o longuíssimo plano-sequência no encontro com o chefe das milícias, quando a câmera gira lentamente para ressignificar a cena; a fuga deste embate floresta adentro; a noite no cemitério em planos abertos; a devolução de um corpo conhecido às águas. Os criadores encontraram poesia num cenário árido — não para enfeitar ou atenuar a dor, apenas para ressaltar a ironia da violência que jamais perturba o cotidiano. Pelo contrário, ela constitui o cotidiano. A aventura de José representa um ato de resistência, mas também de sobrevivência e dignidade.
Tudo isso será ressaltado no rosto expressivo de Arley de Jesús Carvallido Lobo, no corpo firme, na fala doce, no doloroso embrulho que carrega consigo ao final. Após acompanhar passo a passo de seu herói, sem abandoná-lo um segundo sequer, a câmera saberá, na conclusão, quando deixar o pescador partir sozinho para a próxima etapa de sua vida. Em certo instante, precisamos nos despedir do homem que concluiu sua tarefa, talvez de maneira inesperada, porém da única forma possível. Este cinema político se cola ao lado das vítimas e valoriza sua força (não confundir com heroísmo) de maneira impressionante.