The Empire (2024)

Faz de conta

título original (ano)
L’Empire (2024)
país
França, Itália, Alemanha, Bélgica, Portugal
gênero
Comédia, Ficção Científica
duração
110 minutos
direção
Bruno Dumont
elenco
Lyna Khoudri, Anamaria Vartolomei, Camille Cottin, Fabrice Luchini, Brandon Vlieghe
visto em
74º Festival de Cinema de Berlim (2024)

Pense num filme de ficção científica. Relembre algum clássico, uma obra conhecida, algum título de sua infância. Que cores ele possui? Metálicas, azul-neon? Quem são os personagens, e em quais cenários se deslocam — uma nave espacial, um laboratório, um planeta distinto? Que tipo de diálogos travam, com quais objetivos? Quais figuras representam o inimigo, impedindo os heróis de concretizarem seus planos? São monstros, alienígenas? O gênero é formado por códigos próprios que, apesar de permitirem evidente criatividade, ainda se estruturam em torno de um imaginário comum.

Por isso mesmo, The Empire soa tão inusitado. A comédia dirigida e escrita por Bruno Dumont elege como protagonistas os pescadores de uma cidadezinha litorânea. Eles não possuem a idade, a aparência, nem o porte físico dos galãs da indústria norte-americana. Entretanto, debatem a luta intergaláctica opondo o bem contra o mal, enquanto empregam o linguajar típico dos feirantes e fazendeiros. A poderosa rainha das forças benéficas veste uma simples saia florida, o cabelo preto com um elástico barato, e veste sandálias apropriadas às ruas de terra.

O humor deste projeto, similar àquele das últimas empreitadas do autor, decorre do choque entre esferas opostas: o moderno contra o tradicional; o urbano contra o rural; a burguesia contra o proletariado (Ma Loute); a fama contra o anonimato (France). Na origem, ele preserva a estrutura do cinema de gênero tradicional, incluindo demônios, armas poderosas e frases de efeito risíveis em sua seriedade. No entanto, desveste esta produção de sua aparência azulada, ultratecnológica, e do senso de imersão no espetáculo que se tornou a base da ficção científica industrial.

Dumont filma o ridículo com o ritmo e a trivialidade de um drama independente. Não precisa sublinhar o caráter absurdo dos personagens, pois sua simples existência provoca estranhamento.

Neste caso, Dumont imagina que o novo herdeiro das forças do universo acaba de nascer neste vilarejo de modestas dimensões e riquezas. Trata-se de uma criança comum, vivendo numa casa popular com a avó e o pai. O demônio é encarnado por Brandon Vlieghe, sujeito franzino, responsável por frases de conquista e ameaça. Sua parceira no crime será Lyna Khoudri, excelente atriz, que adota a coluna sempre arqueada, o celular em punho, como forma de ridicularizar a sedução contemporânea. Já as forças do bem contam com Anamaria Vartolomei, portando somente biquíni e sabre de luz, e o impulsivo Julien Manier, que insiste em reverenciá-la em plena rua, para o constrangimento da líder.

Alguns procedimentos curiosos são implementados no intuito de produzir embate estético e narrativo. Em geral, as cenas movidas por diálogos entre duas ou três pessoas paradas, em plano fixo, trazem um ator profissional junto a um ator local, inexperiente. O contraste, geralmente minimizado em projetos tradicionais, é aprofundado pelo cineasta, que faz deste desnível uma intenção assumida. O registro dos fazendeiros montados a cavalo, debatendo a salvação do planeta contra ameaças sobrenaturais, levou o público às gargalhadas na sala de cinema, por romper com as expectativas desta forma de representação. 

Além disso, parte dos diálogos sustenta a aparência de improviso. A montagem permite que os atores errem suas falas e se corrijam dentro do plano; ou que atropelem uns aos outros na hora de falar. Silêncios constrangedores (do tipo “agora é a minha fala ou a sua?”) também são incorporados, junto às repetições e às conversas banais. Isso permite diluir a formalidade e o senso de finalidade tão rígidos ao gênero espacial e científico. Quando a Rainha (Camille Cottin) conversa com pessoas nas ruas, ela aparenta reagir a conversas não ensaiadas, ou apenas parcialmente estimuladas em texto. 

Este jogo de cena solicita um espectador atento, convidado a decifrar o que seria da ordem do naturalismo (os espaços, os figurinos, a luz natural) e o que pertence ao mundo codificado das fantasias cósmicas. Dumont poderia facilmente criar uma paródia debochada e acelerada, em ritmo apropriado aos Nuls e outros grupos cômicos franceses. Ora, ele prefere filmar o ridículo com o ritmo e a trivialidade de um drama independente. Não precisa sublinhar o caráter absurdo dos personagens, pois sua simples existência provoca estranhamento.

“O príncipe das trevas precisa ser exterminado da face da Terra”, “Toda potência do mal mundial reside nesta criatura”. Frases do gênero se revelam muito mais divertidas quando proferidas com comprometimento por pessoas em trajes de banho, numa rua à beira-mar, do que se fossem presenciadas por atores tentando fazer rir. Dumont nunca nos convida ao deboche destes códigos, que o fascinam em sua artificialidade. Mas ele deixa as gargalhadas presas às gargantas, evitando a punchline, as referências explícitas à cultura pop, as gags de roteiro e o humor físico ou escatológico. Quando rimos, o fazemos por incômodo ou estranhamento, não porque uma piada foi longamente construída com este intuito.

O mecanismo aplica um raciocínio semelhante aos símbolos tradicionais. Há naves espaciais, com o diferencial de possuírem a aparência de uma catedral antiga (quando se alude ao retrofuturismo); prepara-se o espectador para uma longa batalha entre forças opostas, ainda que o enfrentamento seja evitado; insiste-se no potencial gigantesco de um bebê que não efetua, de fato, ação nenhuma. Outro prazer cômico do diretor (e também do espectador, espera-se) reside na frustração das promessas.

The Empire brinca com a aparência do cinema de gênero, escancarando convenções que nos acostumamos a interpretar como normais. Ao deslocá-las de sua geografia, suas motivações e modos de agir, investe na proposta metalinguística de realizar um filme sobre a maneira como filmes geralmente são feitos. Em outras palavras, o distanciamento enquanto conceito e finalidade. 

As cenas podem não ser particularmente engraçadas em diversas passagens, e até arrastadas demais (Dumont, co-montador, permite que cada tomada demore muito mais do que normalmente demorariam numa comédia). Entretanto, se tiverem levantado algumas sobrancelhas ou provocado desconforto, terão cumprido o seu papel. O longa-metragem gosta de fazer de conta que está propondo uma batalha galática; fingir que coloca frente a frente uma rainha e um demônio; assim como fariam crianças com seus bonecos. 

Ora, os bonecos continuam bonecos — as crianças possuem ciência de sua encenação, e espera-se que o espectador também o tenha. Trata-se de um pacto lúdico de crença, levado à enésima potência: se eu pegar um fazendeiro idoso e disser que ele faz parte de um exército intergalático, você acreditaria? Em que momento se rompe a verossimilhança, a capacidade de identificação e engajamento do espectador? A comédia testa os limites da mise en scène e da linguagem, curioso para descobrir em que instante a corda se rompe.

The Empire (2024)
7
Nota 7/10

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