Os Fabelmans se articula em torno de uma ciranda afetiva de fácil identificação. Existe muito carinho nesta empreitada autobiográfica, seja do diretor Steven Spielberg pelos personagens, dos personagens entre si, ou desta obra pela arte cinematográfica. Neste filme-testamento, o norte-americano declara seu amor à sétima arte, explica o papel que desempenhou em sua vida e convida os cinéfilos do outro lado da tela a amarem as imagens tanto quanto ele as ama. Sentir-se parte do mesmo círculo de adoração de Spieberg é tentador: quem não gostaria de se tornar cúmplice do diretor?
Assim, não será espantoso que as reações ao projeto sejam massivamente positivas, posto que reúnem a apreciação popular à figura do autor, a admiração de uma homenagem cinéfila e a ternura de uma história familiar, confessional e de vocação universal. No ápice de uma carreira consolidada, o diretor não ostenta seu talento ao público — afinal, o que lhe restaria a provar? —, apenas convida o interlocutor a conhecer o homem por trás do ícone. Os aspectos de “revelação da vida privada”, de “a formação de um gênio” e de “Spielberg por trás dos holofotes” também oferecem um poder de atração considerável.
Apesar de entrar em campo com o jogo ganho, o longa-metragem possui méritos suficientes para se sustentar por conta própria — ou seja, para além do evidente valor extrafilme. Em primeiro lugar, porque a carta de amor ao cinema está longe de um afeto cego e esvaziado de sentido: o autor possui boas justificativas para a sua tese. Neste sentido, o roteiro comprova a inteligência do cineasta, além do completo domínio da linguagem audiovisual. Em outras palavras, ao espectador médio, ainda não seduzido pelo cinema enquanto vocação, a obra oferece uma sólida argumentação em favor da dedicação profissional às artes.
Em primeiro lugar, sugere que a câmera consegue captar coisas que o olho nu não enxergaria. A tese se sustenta através da belíssima sequência em que a câmera 8mm de Sammy (Gabriel LaBelle) registra, por acaso, um segredo que transforma os rumos da família. O poder documental da representação, enquanto prova da realidade, é utilizado pelo garoto quando confronta a mãe com o ocorrido. Nesta hora, palavras se tornam dispensáveis, e as imagens animadas falam por si próprias. Spielberg acredita que o cinema enxerga mais e melhor do que os seres humanos. Com ele, a subjetividade inerente àquele que filma é atenuada pela objetividade da câmera que, uma vez ligada, filma aquilo que se encontra à sua frente.
Resta a impressão de que os amores são indissociáveis. Os amores ao pai, à mãe e ao cinema se fundem num único gesto.
Em segundo lugar, o cinema é mais que documento: ele pode ser magia. Essa afirmação pode soar como uma obviedade, vinda do diretor de Tubarão (1975), Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977) e E.T.: O Extraterrestre (1982). No entanto, esta mágica ocorre enquanto formação do olhar. Não é por acaso que, na cena onde o pequeno Sammy assiste ao seu primeiro filme, ele observa um trem desgovernado, vindo em sua direção, e se apavora de verdade. Aqui, Spielberg faz alusão à Chegada do Trem à Estação La Ciotat (1896), uma mistura de fato e mito fundador do cinema e do pacto da (des)crença com o espectador. Sabemos que uma ficção consiste numa construção artificial, no entanto, quando imersos na sala escura, tememos e torcemos de verdade pelos heróis.
Em terceiro lugar, defende-se o cinema enquanto ponto de vista e ferramenta política. Outro instante belíssimo, na obra repleta de cenas marcantes, se situa na projeção pública de um filme de escola, a respeito das férias simuladas do colega. Sammy escolhe, pelos enquadramentos, pela duração e articulação dos planos, vangloriar a figura daquele que sempre o maltratou. A revanche das agressões bastante físicas ocorre simbolicamente, através da imagem: teria sido fácil demais ridicularizar o algoz. O jovem cineasta efetua o oposto: cria um elogio tão artificial, tão exagerado, que beira a crítica pelo avesso, via idealização.
Em quarto lugar (de fato, a lista é longa), a representação permitiria experimentar aspectos perigosos do real sem concretizá-los de fato, ou seja, num ambiente seguro. Esta seria uma possibilidade de teste, de simulação. A narrativa poderia citar a maneira como os filmes de terror nos permitem saciar a curiosidade a respeito da morte (nossa e dos outros) sem precisar de fato matar alguém. O norte-americano prefere uma metáfora mais singela: a filmagem de um acidente de trem, a partir de brinquedos domésticos. “Assim, você vai poder ver quantas vezes quiser, e perder o medo dos acidentes, sem precisar quebrar o seu trenzinho”, explica a mãe. O cinema, neste caso, nos protege do mundo enquanto age de maneira direta nele — afinal, o garoto terá novas percepções a respeito do tema a partir do aprendizado com as sessões repetidas de sua própria filmagem.
Além disso, The Fabelmans compreende o cinema enquanto ofício que se desenvolve, se aperfeiçoa, se reinventa. Ao contrário da imagem de gênios prontos, que nascem imbuídos de um talento natural para criar obras-primas, o roteiro valoriza a profissão enquanto fruto de um grande esforço coletivo, de amadurecimento técnico, estético e de visão de mundo. Conforme cresce e amadurece, Sammy também aprimora a criação dos filmes. À medida que acredita mais em si, e no potencial de suas obras, consegue criar um estilo pessoal. A cena tragicômica com um ídolo do garoto apenas confirma esta tendência: no lugar de frases inspiradoras, o veterano do cinema ensina o menino a enquadrar horizontes. Haveria uma melhor maneira de compreender o cinema enquanto elaboração, longe da mera apreensão do real?
No entanto, há mais que um discurso sobre cinema nesta narrativa. Spielberg discorre a respeito da paixão do pai pelas ciências (em oposição à “inutilidade” da arte), retrata a depressão da mãe, a religiosidade ferozmente pragmática do tio, o antissemitismo crescente nas pequenas cidades dos Estados Unidos, a possibilidade de afetos válidos fora da religião e do matrimônio — tudo isso com notável respeito e ausência de julgamento moral em relação aos indivíduos envolvidos. Há um misto de sinceridade brutal e também respeito à privacidade neste drama muito bem equilibrado entre o que deseja mostrar e o que prefere esconder.
O cineasta sempre trabalhou bem com atores infantis e juvenis, e comprova esta habilidade na história pessoal e diminuta. Gabriel LaBelle navega entre a timidez e a capacidade de se impor intelectualmente, ainda que não consiga fazê-lo pela força. Longe de elogiar excessivamente ao menino — e a si mesmo —, Spielberg consegue explicar que a inteligência e curiosidade deste personagem provêm da educação que recebeu, entre a paixão pela arte e um pragmatismo herdado da engenharia do pai. LaBelle sustenta o medo, a curiosidade, mas também a força, evitando a vitimização quando começa a sofrer bullying na escola.
Quanto ao restante do elenco, Paul Dano se mostra um ator excelente para o papel do pai. Carinhoso, porém firme, tem sua contradição expressada no relacionamento com o cinema. Ele apoia as criações de Sammy, ainda que acredite, no fundo, se tratarem de mero passatempo. Dano sustenta a fala doce, o sorriso fácil, e especialmente um teor de mistério que vem a calhar na sequência dos quiproquós amorosos envolvendo a esposa. Michelle Williams, em contrapartida, compõe uma mãe afetada, parte sorridente demais, parte tomada por um aspecto de diva. É interessante que a atriz, uma das mais talentosas e contidas de sua geração (quando trabalha com Kelly Reichardt, por exemplo) pode ser tão maneirista nas mãos de diretores mais sentimentais.
Apesar de afastar elementos assumidamente fantásticos (a magia, aqui, se encontra no filme-dentro-do-filme), Spielberg ainda mantém o virtuosismo da câmera quando circula um editor de película 8mm, registra a dança sensual da mãe perto da fogueira ou apresenta a filmagem doméstica de um brinquedo quebrado. Janusz Kaminski, diretor de fotografia habitual do diretor, felizmente atenua o virtuosismo excessivo de filmes como Amor, Sublime Amor (2021) para se adequar às necessidades da trama, sem se impor a ela. Spielberg contrapõe o vaidoso musical com esta obra íntima e muito mais satisfatória.
Ao final, resta a impressão de que os amores são indissociáveis. Os amores ao pai, à mãe e ao cinema se fundem num único gesto — algo compreensível para um diretor tão afeito aos valores familiares em suas ficções. Gosta-se de um porque gosta-se do outro: Sammy manifesta seu carinho pela família nos filmes que faz (cortando as partes embaraçosas, por exemplo), enquanto comprova o amor por eles ao persistir no “passatempo” que agrada a si mesmo, e aos demais moradores da casa. A certa altura da trama, o pai solicita ao filho que filme, por favor, para ajudar a mãe em processo de luto. É preciso que ele abandone os outros projetos para priorizar este, mais pessoal, que talvez traga felicidade à mulher depressiva. Além de tudo, segundo Spielberg, o cinema salva.