Amor, Sublime Amor (2021)

A câmera que dança

título original (Ano)
West Side Story (2021)
país / gênero
EUA / Musical, Romance, Drama
Duração
156 minutos
direção
Steven Spielberg
Elenco
Ansel Elgort, Rachel Zegler, Ariana DeBose, David Alvarez, Rita Moreno, Brian d’Arcy James, Corey Stoll, Mike Faist, Josh Andrés Rivera, Iris Menas, Sebastian Serra
visto em
Cinemas

Um dos principais questionamentos diante de refilmagens diz respeito à motivação por trás da empreitada. Existe uma razão comercial, sem dúvida: em tempo de instabilidade na indústria, devido à Covid-19 e suas consequências, compreende-se que os produtores apostem em marcas conhecidas e projetos pré-aprovados no imaginário popular. É muito mais fácil emplacar um novo Homem-Aranha do que uma história original. No entanto, restam indagações quanto às intenções artísticas por trás deste gesto. Para os criadores, o que levaria à decisão de refazer uma obra adorada em sua época?

A primeira possibilidade se encontraria na tentativa de melhorar uma obra ruim. No terreno das adaptações literárias, Jean-Luc Godard decidiu provar a capacidade de fazer um filme bom a partir de um livro enfadonho (em suas palavras), realizando O Desprezo (1963). A segunda possibilidade estaria transformada às transformações socioculturais. Face ao clássico longa-metragem O Nascimento de uma Nação (1915), impregnado de racismo em cada cena, Nate Parker imaginou uma versão progressista da história norte-americana em sua obra homônima de 2016. A terceira opção se encontraria nas obras nostálgicas e referenciais, elaboradas por diretores cinéfilos que pretendem honrar os títulos que marcaram sua infância (basta pensar na integralidade do trabalho de Guillermo Del Toro).

Ora, uma quarta possibilidade residiria na tentativa de rivalizar com o clássico, mostrar-se à altura de uma grande filme. Um duelo de egos, mas também de status de domínio de linguagem. Seria plausível colocar a nova versão de Amor, Sublime Amor (2021) neste último caso. Ao invés de homenagear ou modernizar o clássico, Steven Spielberg compete, em certa medida, com o trabalho de Robert Wise e Jerome Robbins. As danças são espetaculares, o trabalho de direção de arte enche os olhos. Mas o protagonista é o próprio autor, chamando atenção a si próprio.

O projeto apresenta uma visão ostensiva de mise en scène, no sentido de revelar insistentemente o próprio dispositivo. A narrativa se abre com um longuíssimo plano-sequência no qual a câmera percorre as ruínas do bairro, revela os empreendimentos futuros, sobe até uma bola de demolição, revela os primeiros personagens e os acompanha pelas ruas da cidade. Seguem-se bailes e lutas onde dezenas de atores e dançarinos executam coreografias impecáveis, em luzes e cores cuidadosas. No entanto, são os malabarismos de câmera que se destacam, sobrevoando corpos, enfiando-se entre os corpos e pernas, afastando-se a um ponto de vista distante, aéreo, de pretensão abrangente e onisciente (como se pudesse observar tudo o que ocorre, simultaneamente).

Spielberg opta por uma direção controladíssima, onde os personagens mal podem se mover sem fora das marcações estritas de cena. María (Rachel Zegler) dorme em posição estranha na cama, para que seu rosto possa ser enquadrado através da argola metálica embutida na cabeceira. Tony (Ansel Elgort) chega à perigosa briga num galpão, com um feixe de luz recaindo precisamente sobre seus olhos. Ele jura o amor à garota porto-riquenha enquanto ambos são iluminados por luzes coloridas, filtradas por um mosaico. Sacrifica-se o real para atingir uma plasticidade extrema, de vertente artificial. As ruínas do bairro em vias de destruição são belamente decoradas; uma morte será banhada em luz quase divina. A miséria social e amorosa se faz belíssima, para o bem ou para o mal.

Paira a impressão incômoda de uma obra que posiciona a maestria da direção à frente do humanismo de seu tema.

Devido a estas escolhas, paira a impressão incômoda de uma obra que posiciona a maestria da direção à frente do humanismo de seu tema. É curioso encontrar em Amor, Sublime Amor um filme-portfólio, tão pretensioso quanto capaz de atingir estas pretensões, a exemplo de O Regresso (2015). Spielberg, cineasta que não tem mais nada a provar a ninguém, efetua um de seus trabalhos mais asfixiantemente pomposos e inchados. Como prestar atenção ao sofrimento da comunidade latina conforme passeiam por um pequeno apartamento pobre com tecidos multicoloridos pendurados pelo teto; ou sofrer com o destino trágico de uma comunidade que morre de maneira tão romântica?

Esta seria a limitação da grandiosidade: o embelezamento da pobreza, e a consequente redução da miséria, da xenofobia e do racismo a meros termas de estudo. A exemplo do filme original, a refilmagem lamenta a existência do ódio entre grupos opostos, acreditando que a violência gere mais violência. A mensagem se revela tão nobre quando superficial: fiquemos todos juntos, amemo-nos uns aos outros. A costura de um dilema histórico através do amor romântico à la Romeu e Julieta (um garoto branco e uma garota porto-riquenha, cujas famílias se odeiam) deixa de situar os dilemas num contexto sociológico preciso. Romantiza-se o amor, mas também a luta de classes, a desigualdade de gêneros, a gentrificação. 

Somos convidados, portanto, a sentir ternura por estas figuras inevitavelmente encaminhadas à tragédia. Talvez o discurso fatalista ocupasse um espaço na onda de musicais dos anos 1940 a 1960, porém em plenos anos 2020, soa ainda mais desconectado da realidade. Spielberg decide polir a visão do longa-metragem de origem, deixando as bordas arredondadas, as imagens mais brilhosas, e as danças, mas frenéticas. No entanto, oferece um projeto anacrônico, incapaz de dialogar com os Estados Unidos contemporâneos. O que significa discutir racismo e xenofobia no país pós-Donald Trump? Após a sinofobia durante a Covid-19? Quais seriam os equivalentes dos Sharks e Jets no país de Eric Garner, Michael Brown, Tamir Rice, Breonna Taylor e George Floyd?

A única tentativa forte de modernizar o discurso de encontra na figura de um personagem transexual, interpretado por Iris Menas. Ora, o garoto tem pouco a fazer na trama além de perambular pelos cenários como um fantasma, em busca de aceitação pela gangue branca. Ele jamais participa das ações, das músicas, do desenlace dos conflitos. Enquanto isso, preservam-se comportamentos que soam incoerentes à pós-modernidade: a paixão efusiva do casal à primeira vista; a vontade súbita de dormir com o assassino do irmão, minutos após descobrir o homicídio; a coreografia embelezada de um estupro na loja. Transmite-se uma sensação de conformismo: as coisas precisavam se encerrar assim mesmo, pois no martírio, os personagens são desculpados e se tornam ícones da nossa incapacidade de amar ao próximo. 

Eles são sacrificados pela trama a título de exemplaridade — está vendo o que acontece, quando se livra à violência desenfreada? Quando se deixa tentar pelo ódio e o preconceito? Amor, Sublime Amor, obra a respeito de grupos sociais muito específicos da paisagem norte-americana, transforma-se num veículo moral, como o diretor tanto gosta de elaborar. Spielberg possui a capacidade de oferecer produtos riquíssimos, extremamente bem decorados e iluminados (existe uma quantidade de flares suficiente para uma ficção científica de J.J. Abrams), embalando uma mensagem bastante simples, focada na família e nas virtudes consensuais. O filme de 1961 podia soar descolado do real em sua época, mas agora, ele se aproxima de uma fantasia surreal, uma fábula de reconciliação. 

Spielberg desenvolve seu equivalente de uma tragédia grega, onde pobres personagens são sacrificados exemplarmente em nome da purificação e expurgo emocional do público. A valorização desta iniciativa — em premiações, em status, nas discussões de cinema entre críticos — equivale a reforçar a técnica acima do conteúdo, ou ainda uma forma vaidosa de autoria. O diretor se torna um pai controlador, rígido, uma figura patriarcal que lida com seus personagens de maneira tão severa quanto condescendente. A linguagem audiovisual possui ferramentas provocadoras para questionar o real, colocando o espectador em posição ativa, reflexiva. Aqui, em oposição, o espetáculo se sobrepõe ao debate. 

Amor, Sublime Amor (2021)
5
Nota 5/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.