The Shadowless Tower nutre uma relação de amor e ódio com Pequim. Por um lado, a capital chinesa é evocada em canções que enaltecem a cidade, seu brilho, seu desenvolvimento, a força de seus habitantes. A câmera passeia por vários pontos da cidade, valorizando o patrimônio e a diversidade. Paira a noção de um local vibrante, sempre cheio de pedestres, propício a encontros com desconhecidos e figuras que marcaram o passado.
Por outro lado, os personagens ocupando este sonho turístico são fracassados, tristes, perdidos. Gu Wentong (Xin Baiqing) é um crítico culinário desprovido de qualquer apreço pela comida, ou pelo ato de escrever. Quase nunca o vemos comendo, cozinhando, apreciando algum prato. Ele se encontra em crise financeira, e aluga o quarto extra a um jovem modelo com dificuldade de se estabelecer no mercado. Em especial, sofre com a distância do pai, afastado da família quando ele era criança, devido a um caso mal explicado de assédio sexual com uma mulher no transporte público. O protagonista também teve uma filha, deixada ao cuidado dos tios.
Ao seu redor, há Ouyang Wenhui (Huang Yao), jovem fotógrafa traumatizada pelo abandono no orfanato quando criança. Outros personagens que circulam esta pequena fábula são maltrapilhos, bêbados, divorciados, doentes. Trata-se de gente que dorme mal, perambula pelas ruas de madrugada, efetua ligações telefônicas no meio da noite, diz coisas de que se arrepende no dia seguinte. O diretor Zhang Lu explora uma capital que vive a partir da imagem grandiloquente, embora seja povoada por indivíduos em situação muito menos glamurosa. Existe uma distância essencial entre o fato e sua representação.
Esta lacuna domina a mise en scène e o filme como um todo. A torre sem sombras, mencionada no título, diz respeito ao grande monumento ao lado da casa de Gu, que supostamente não produziria sombras em nenhum momento do dia. Seria verdade? Como assim? Uma colega do herói afirma que seus ancestrais, de uma dinastia nobre, teriam ajudado na construção. Depois, se desmente. Adiante, volta atrás e confirma a história. O crítico, divorciado, escuta os amigos fazerem uma longa elegia ao fato de ser o único do grupo a não ter se separado da esposa. Há uma distância entre o que os personagens dizem e aquilo mostrado pelas imagens, ou entre a dedução e as versões oficiais.
Há magia no banal, e em especial, há banalidade na magia, caso da sombra da torre, que constitui um evento e, ao mesmo tempo, uma curiosidade qualquer.
Este desnível se encarrega de produzir o humor sutil do longa-metragem. O cineasta efetua uma crônica carregada de impressionante atenção aos ruídos e pequenos casos que ocorrem ao nosso redor, no cotidiano. Assim, há espaço para o ônibus que quebra, forçando os passageiros a descerem e pegarem o próximo; aquele restaurante bom que ninguém mais frequenta, por ter saído de moda; as garçonetes conhecidas pelos clientes frequentes; os senhores jogando xadrez na rua e opinando sobre a vida alheia. Zhang Lu afasta a noção de utilitarismo das cenas e imagens, além de demonstrar conhecimento profundo da rotina retratada.
Talvez seja justo afirmar que ele filma Pequim como uma pessoa, ao invés de uma cidade. Efetua, portanto, um retrato no sentido fotográfico do termo. Ao longo de cenas relativamente soltas ou inconsequentes, deixa a busca do herói pelo pai em segundo plano, retornando com certa frequência para costurar os encontros fortuitos pelo bairro. O roteiro demonstra uma sofisticação ímpar na articulação entre o privado e o público, a tradição (os rituais fúnebres, cantos tradicionais) e a modernidade (as fotografias digitais e efêmeras de Ouyang). Os diálogos estão repletos de provocações, ironias, repetições, equívocos. Lu, também roteirista, maneja a construção de fala e comportamentos profundamente verossímeis. Em paralelo, o som transparece um cuidado excepcional com respirações, deglutições, cantos na casa ao lado ou barulhos de trânsito. Há vida pulsando pelas bordas.
Isso não significa que The Shadowless Tower se prenda a um realismo social bruto, pelo contrário. A obra abraça poesias, metáforas e símbolos que se repetem em looping, na forma de gags tragicômicas. Cada pequeno objeto retorna nas mãos de outro personagem, adicionando um teor paradoxal e fazendo com que todos se cruzem na cidade, mesmo quando não se encontram de fato. A pipa, o ato de andar para trás, os pedidos de abraço, a flor de Beidahe, a massagem na orelha, as minhocas na mão e uma dezena de outros elementos ressurgem, recombinando-se a cada vez.
A impressão de leve teatro do absurdo se aprofunda com as cenas que sofrem modificação de tom e propósito no interior de um único plano. A câmera adota o costume de fazer leves movimentos panorâmicos à direita ou à esquerda, e quando retorna ao ponto focal anterior, encontra um novo personagem, que nem sequer se encontrava no recinto, ou então presencia a troca de objetos e funções. O recurso é inesperadamente sutil, e pode passar despercebido em meio à atmosfera naturalista. Mas existe um encanto em presenciar Gu dançando com a amiga e, num leve movimento de câmera, estar dançando sozinho. Ele esteve sozinho este tempo todo? Qual seria o sonho? Em qual versão devemos acreditar?
O tom inebriante se estende ao prazer no uso de reflexos e composições cuidadosamente coreografadas para soarem banais. O encontro dos protagonistas no hotel, sentando-se no sofá, na cama e no chão, permite aos espelhos funcionarem como contraplano inserido no próprio plano, evitando o corte da montagem. Adiante, os monitores da câmera de segurança revelam um ângulo improvável da ação até que Gu e Ouyang entrem em quadro. Nenhuma destas escolhas chama atenção excessiva ao dispositivo, ainda que contribua de maneira expressiva à impressão de farsa.
Ao final, nada representa melhor o subtexto farsesco do que as provocações entre os protagonistas, que ora soam como namorados, ora se tratam como pai e filha, graças à diferença de idade. “A vida é um espetáculo”, canta uma das várias músicas. O filme parte deste princípio que toda existência, por mais comum e fracassada, carrega elementos suficientes para encantar e justificar a atenção dos artistas — e também do público. Há magia no banal, e em especial, há banalidade na magia, caso da sombra da torre, que constitui um evento e, ao mesmo tempo, uma curiosidade qualquer. Nesta transição entre dois mundos reside uma beleza difícil de capturar e controlar.