The Trip (2021)

Assassinos como eu e você

título original (ANO)
I Onde Dager (2021)
País / Gênero
Noruega / Comédia, Terror
duração
113 minutos
direção
Tommy Wirkola
Elenco
Noomi Rapace, Aksel Hennie, Atle Antonsen, Christian Rubeck, André Eriksen, Selome Emnetu, Jeppe Beck Laursen, Jonas Hoff Oftebro
visto em
Netflix

Existe certo prazer em desenhar um casal rico e bem-sucedido disposto a se assassinar mutuamente. Ao invés da felicidade prometida pelo conforto financeiro e pela fama de ambos, imagina-se o contexto em que Lars (Aksel Hennie) planeja o assassinato da esposa Lisa (Noomi Rapace), que também estuda a melhor maneira de matar o marido. O conceito de “felizes para sempre” promovido pela doutrina cristã, assim como o ideal de conforto do lar, e de afeto pressuposto na união, se viram do avesso de maneira espetacular.

Nenhum dos dois seria, até ali, um assassino convicto, um psicopata desalmado nem um sujeito inerentemente ruim: o ódio existe única e exclusivamente em direção um ao outro. Ele desempenha o papel de um diretor de propagandas querido pelos atores com quem trabalha. Ela é uma atriz esforçada, que faz almoços carinhosos com a melhor amiga. 

Em outras palavras, trata-se de pessoas “comuns”, com as quais o espectador teria maior facilidade de se identificar do que com uma dupla improvável de serial killers. Neste gesto de aproximação reside a semente de humor: de maneira mais ou menos consciente, o espectador é levado a se projetar naquelas figuras que, ao invés de recalcarem ou lidarem civilizadamente com o desgaste inerente à vida de casal, passam ao plano concreto do assassinato dentro de casa.

É preciso que a morte seja megalomaníaca, surreal, tanto para garantir o decoro do projeto quanto para demarcar a distância do real (trata-se de uma fantasia absurda, distante da realidade, que não encoraja ninguém a eliminar seu cônjuge). A exemplo de A Guerra dos Roses (1989) e Sr. e Sra. Smith (2005), trata-se de um filme amoral, ao invés de imoral.

Devido a tamanha licença com o real, The Trip (2021) não se preocupa em criar motivações plausíveis aos heróis. É difícil acreditar que a morte seja a única solução possível para marido e esposa, que sequer tentaram se afastar um do outro por outras vias antes de recorrerem ao assassinato.

Desculpas sobre a vontade de pôr a mão no seguro de vida alheio são despejadas timidamente, como se pedissem ao espectador para não prestar atenção ao fato de que o conforto financeiro de ambos dispensaria tal ato de desespero. Novos assassinos serão incorporados à mistura, com objetivos indefinidos ou implausíveis. O diretor Tommy Wirkola se aproxima de um reality show de pessoas perversas, onde vence o sobrevivente.

Tamanho descaso com a verossimilhança provoca alguns dos melhores e piores aspectos do projeto. Por um lado, o cineasta de Zumbis na Neve (2009), João e Maria: Caçadores de Bruxas (2013) e Zumbis na Neve 2 (2014) compreende o valor de uma fantasia tresloucada, semelhantes às criações sem limites nem criadas por alguma criança de forte imaginação.

A direção demonstra uma obsessão anal e genital digna de adolescentes hormonais.

Existe um prazer notável da direção em introduzir três detentos livres na casa, além de um ajudante e outros personagens capazes de ampliar o teor dos conflitos. Quanto mais divertido se torna, mais se desloca do real. Antes da metade da projeção, as razões de Lisa e Lars terão sido deixadas em segundo plano, em detrimento de um tiroteio desenfreado.

Por outro lado, tamanha traquinagem se traduz num comportamento infantil e regressivo. A produção se diverte com a ideia de um homem adulto defecando no sótão, e das fezes caindo sobre outras pessoas no andar inferior. A perspectiva do estupro feminino é deslocada para um “engraçado” (e por isso mesmo, questionável) estupro masculino.

Assim, Wirkola se diverte com tanto com tiros e planos de morte quanto com cocô e perspectivas de homens currados a força por três sujeitos grandes e fortes. Ainda há alusão a objetos escondidos no ânus e ladrões de pênis enormes. A direção demonstra uma obsessão anal e genital digna de adolescentes hormonais, descobrindo o funcionamento do próprio corpo.

Ao menos, os atores abraçam com entrega exemplar este teatro do absurdo. Teria sido fácil exagerar nos traços e nas caretas, sublinhando as falas improváveis dos personagens. Ora, Aksel Hennie e Noomi Rapace compreendem a necessidade de encarnar estas figuras com um despojamento natural, o que amplia sua potência: a banalidade com que se atacam rompe com a expectativa de um planejamento sórdido.

Ele, em particular, mantém uma expressividade ao limite do descaso e do tédio, algo improvável diante das situações desenvolvidas. Ela cria uma personalidade extrema a princípio, apenas para buscar traços de naturalidade a seguir. Em termos de comicidade, pelo menos, a obra não subestima seu espectador, acreditando na capacidade deste em compreender ironias e sarcasmos sem a ajuda de diálogos explicativos, atuações paspalhonas nem trilha sonora travessa.

Atenção: possíveis spoilers a seguir.

O caráter regressivo também faz com que a farsa precise de uma reparação no final, quando marido e esposa serão colocados de volta em suas posições esperadas pela sociedade, amando-se e protegendo-se. Assim, o pequeno lapso homicida seria um expurgo necessário para enxergarem um no outro a pessoa por quem se apaixonaram desde o princípio.

Em outras palavras, a aventura ensandecida é permitida dentro de uma comédia familiar contanto que se garanta que: 1. No fundo, são pessoas boas; 2. O ímpeto da morte derivou de um lapso, não uma falha de caráter; 3. Eles voltam a se amar no final. A ousadia vai até certo limite, quando o diretor-criança precisa guardar os brinquedos espalhados, recolocá-los na caixa e arrumar o quarto. O mundo precisa voltar à normalidade.

Embora o roteiro se domestique (palavra interessante, neste contexto) rumo à conclusão, a mise en scène segue numa alegria próxima do delírio: cada tiro de escopeta envia o alvo pelos ares; personagens triturados por máquinas cortantes seguem vivos; assassinos perigosos são enganados por um truque banal de sedução. The Trip se desenvolve num mundo particular de faz de conta, onde existe maior prazer em inventar conflitos do que em solucioná-los. “E se chegasse uma nova pessoa na casa? E se o pedaço de cocô caísse de um cômodo ao outro? E se…?”.

A comédia transborda de ideias de conflitos, e acreditando que basta reuni-los para que se resolvam sozinhos, mais cedo ou mais tarde. Há tanta paixão pela capacidade criativa do cinema quanto desprezo por sua coerência interna, discurso e narrativa. Para o bem ou para o mal, Wirkola propõe um exercício de inconsequência criativa.

The Trip (2021)
6
Nota 6/10

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