Riceboy Sleeps (2022)

Pequenas tragédias cotidianas

título original (ano)
Riceboy Sleeps (2022)
país
Canasá
gênero
Drama
duração
117 minutos
direção
Anthony Slim
elenco
Choi Seung-yoon, Ethan Hwang, Dohyun Noel Hwang, Anthony Shim, Hunter Dillon, Jerina Son, Kang In Sung, Choi Jongryul, Lee Yong-nyeo
visto em
Festival de Toronto 2022

É interessante que alguns filmes soem como autobiografias, mesmo que não o sejam. Antes de saber que este drama se inspira de fato na vida do diretor Anthony Shim, percebe-se o grau de familiaridade com o tema: a vida de mãe e filho, imigrantes coreanos, habituando-se ao modo de vida canadense dos anos 1990. Cada cena é impregnada de afeto, mas também de detalhes na descrição das comidas, das roupas, dos penteados, da maneira de falar e de se portar. 

Esta seria, por si própria, uma qualidade notável de Riceboy Sleeps: a representação em conhecimento de causa. Muitos cineastas bem-intencionados se dedicam a criar homenagens ou apelos a respeito da dor alheia, no entanto, esbarram em representações inverossímeis, ou idealizadas, da marginalidade. Este drama carrega uma quantidade de símbolos dignos de quem conhece a rotina de uma família estrangeira no Canadá. A preocupação dos criadores com a direção de arte, a textura da imagem e os sons ao redor ultrapassa a importância da imigração e do não-pertencimento enquanto temas.

O roteiro se abre na condição de fábula: conforme observamos uma paisagem distante, o narrador em off nos informa a respeito da infância da mãe So-young, de sua dificuldade para superar o abandono, do casamento com um sujeito por quem era apaixonada, mas que cometeu suicídio. A sucessão de tragédias, apresentada desde o princípio, condiciona o olhar do espectador: somos levados a enxergá-los enquanto sofredores, ou sobreviventes de um sistema de exclusão afetando os dois lados do globo. Entre pedidos de cidadania negados e orfandade, o texto multiplica as causas para o sentimento de estrangeirismo.

Por isso, o primeiro olhar à mãe e ao filho Dong-hyun, ainda pequeno, chega carregado de significados. O cineasta poderia esperar para que se descobrisse esse histórico aos poucos, moldando nossa percepção paulatinamente. Ele prefere uma estrutura mais controlada e didática de storytelling: estes são os meus personagens, este é o passado de cada um, esta é a situação presente em que se encontram. Pronto. Agora, pode-se começar a jornada. Shim lida com seu espectador como aquele amigo da família contando uma história ao redor da fogueira: de maneira confortável, mas também pouco exigente com o interlocutor. 

O filme não demora para se render ao melodrama. Devido à paixão pelos sentimentos, a obra esbarra no sentimental.

Somos colocados em posição de passividade e escuta, sem que se solicite interpretações complexas a respeito das decisões morais e éticas de mãe e filho. Sabemos que a trabalhadora de uma usina faz o melhor por seu garoto, e que o menino rebelde demora a reconhecer os esforços desta mulher. Simon, homem que entra na vida de ambos, será unicamente gentil e acolhedor (na condição de ator, o cineasta oferece a si próprio um personagem apaziguador, elo entre o Ocidente e o Oriente). O roteiro evita grandes transformações de visão de mundo, preferindo as modificações corporais. Assim, na ausência de dúvidas e hesitações, entrega a um de seus personagens um câncer em fase terminal.

O filme não demora para se render ao melodrama. Devido à paixão pelos sentimentos, a obra esbarra no sentimental: entram em cena adolescentes espancados, lutas contra a morte, pedidos de casamento recusados, muita trilha sonora lacrimosa, flashbacks em preto e branco e câmera lenta, amantes testemunhando o suicídio de seus amados, redenções com familiares distantes, segredos revelados em meio à natureza, cenas de gritos e choros para que os personagens exteriorizem suas emoções. Certo imaginário da delicadeza oriental se encontra com recursos de filmagem pop e ocidentalizados.

O principal sintoma deste encontro reside nos formatos da imagem. Enquanto So-young e Dong-hyun se encontram num apartamento canadense, o filme aposta na tela em proporção 1×1:33, próxima do quadrado, com a textura saudosa do 16mm. As lentes em grande-angular promovem certa distorção na imagem, destinada a representar um incômodo, uma sensação de antinaturalidade e desconforto. Eliminando parte da imagem disponível, sugere-se que nenhum dos dois se sinta completo, ou capaz de se expressar livremente.

Quando enfim viajam à Coreia do Sul, em busca das raízes, a tela se abre em 1×1:87, adotando planos mais amplos, em lentes sem distorção. O filme enfim respira, assim como os personagens, enquanto a fotografia abraça a natureza, as montanhas azuladas, os arrozais dos avós. A ideia de utilizar o formato quadrado para a ideia de repressão, e a imagem mais aberta para o respiro e encontro de si, está longe de constituir uma novidade, pelo contrário. Xavier Dolan, outro jovem canadense, utilizou o mesmo princípio de maneira ostensivamente kitsch, assim como uma dúzia de jovens criadores.

Outros recursos soam emprestados a uma cinefilia recente: a câmera na mão, flutuando em torno dos jovens de uma escola, em perpétuo movimento, lembra o trabalho efetuado por Gus van Sant e pelo diretor de fotografia Harris Savides em Elefante (2003). A saturação voluntárias das cores, e a tendência a se aproximar dos personagens num movimento posterior ininterrupto gera certa aparência de videoclipe, condizente com o retrato dos anos 1990, mas um tanto anacrônica para uma obra que, afinal, constrói-se em 2022, para um espectador do século XXI.

Logo, a imagem chama atenção excessiva a si própria, girando e deslizando ao redor de alunos parados, ou atentando-se a figuras e corpos na usina que acabam se revelando meros figurantes. Talvez Shim busque a aparência de inquietação para as cenas no apartamento canadense, aquietando-se por fim quando chega à Coreia. O recurso funciona, ainda que de maneira tão explícita que deixa pouco à imaginação do espectador. A literalidade da poesia e da estética tornam o resultado tão acessível a um público amplo quanto redutor para quem espera mais de um retrato social intercontinental e intergeracional.

Riceboy Sleeps se encerra na condição de uma viagem terapêutica, tanto aos personagens quanto ao público. Defende-se que feridas do passado só podem ser curadas com um olhar profundo às cicatrizes, investindo no retorno do recalcado através da investigação nas origens familiares. Na impossibilidade de curar o corpo doente, cura-se a alma, e se dá por satisfeito. Os dois personagens compreendem a grandiosidade um do outro, e sua pequeneza diante da natureza, somente quanto confrontados à morte iminente de um, e à morte do pai. Assim se encerra a obra de estrutura clássica, embalada numa compreensão saudosista e multicolorida dos anos 1990.

Riceboy Sleeps (2022)
6
Nota 6/10

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